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Um patrimônio não nasce, torna-se: a mulher no patrimônio imaterial brasileiro


Image: Pixabay


Determinadas discussões têm chamado a atenção para o tema da sub-representação do papel das mulheres e das disparidades na repartição das responsabilidades e deliberações entre homens e mulheres nos processos institucionais, sociais e culturais relacionados ao patrimônio cultural imaterial brasileiro. E tais questões suscitam uma reflexão relevante sobre a democracia na nossa sociedade, especialmente no tocante aos processos decisórios sobre políticas públicas nos cenários institucionais.


Os padrões e comportamentos ditos femininos e masculinos (e, por óbvio, também aos que não se enquadram nesse binômio) são resultados de uma construção cultural e social definida pelas relações de poder entre homens e mulheres e pelas normas e valores associados a esses papéis [1].


Nesse sentido, o setor cultural não está, assim, imune às desigualdades e às regras comportamentais que permeiam outros setores da sociedade. Como vários outros, as manifestações relacionadas ao patrimônio cultural imaterial é um âmbito, que, durante séculos, vem sendo regido por valores tradicionais, comumente patriarcais.


Ainda que contribuições relevantes sobre as questões de gênero tenham sido pautas atuais no cenário internacional e no Direito nas últimas décadas, estamos distantes de uma situação de amparo ao empoderamento feminino que leve à uma igualdade. No âmbito do patrimônio cultural, tal situação é igualmente desfavorecida. Há relativamente pouca menção às mulheres ou às questões de gênero e, quando abordada, geralmente o tema é reduzido as questões das mulheres, “como se os homens não tivessem gênero” [2].


Nesse sentido, podemos recordar as celebrações, em 2018, do Ano Europeu do Patrimônio Cultural, onde foram previstos mais de 7 mil eventos em 28 países, com festivais, feiras e conferências, resultando num “mosaico rico e diversificado de expressões culturais e criativas” das tradições europeias [3], mas que foi severamente criticado pelos raros eventos focados na história e na herança das mulheres ou nas dinâmicas de gênero [4].


Há que se mencionar também as manifestações do patrimônio cultural imaterial que refletem uma visão androcêntrica da sociedade em que as melhores posições sociais e de trabalho são prioritariamente ocupadas pelos homens e vistas pela sociedade como algo natural, a partir de um entendimento “sexista, classista e racista” [5]. Neste caso, podemos citar o Círio de Nazaré, registrado pelo Iphan desde 2004 e declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em dezembro de 2013.


Apesar de as mulheres serem responsáveis por vários aspectos do ritual do Círio, como a decoração da berlinda e as providências para a confecção do manto que todos os anos veste a imagem da Santa, as decisões e a gestão central do evento são realizadas por meio de comissões de confreiros e religiosos [6], oficialmente composta por homens.


Assim, as principais deliberações no tocante ao evento não são permitidas às mulheres, nem mesmo a seleção do manto que cobrirá a Santa no dia do evento. Isto é, embora as mulheres sejam encarregadas da confecção do manto, a escolha do modelo final é responsabilidade do presidente da Diretoria da festa, que é sempre o pároco de Nazaré – um homem.


A pouca presença e até mesmo a ausência da figura feminina em eventos relacionados ao patrimônio cultural imaterial, exemplificada na organização do Círio de Nazaré, torna patente o fato de que múltiplas expressões culturais são dominadas por gestões, decisões, práticas e valores predominantemente masculinos, o que perpetua a desigualdade de gênero presente também nas escolhas comunitárias sobre a interpretação, preservação e transmissão desse patrimônio.


Diante disto, em 2014, a Unesco publicou o documento Gender Equality, Heritage and Creativity [7], reconhecendo a importância do gênero nas políticas culturais e nas práticas relacionadas ao patrimônio, enfatizando ainda como prioridade global a necessidade de pesquisas interdisciplinares sobre igualdade de gênero no patrimônio e nas indústrias criativas, juntamente com ações mais direcionadas, em nível nacional e internacional, para apoiar políticas e estratégias na cultura.


Para a Unesco, a igualdade de gênero se refere aos papéis e responsabilidades criados e incorporados nas famílias, sociedades e culturas. Consequentemente, as políticas culturais na área devem ser baseadas em um compromisso com os direitos culturais e a diversidade cultural, sustentada pela estrutura internacional de direitos humanos. Isto é, devem entender e considerar o papel das mulheres como um fator importante na identificação do patrimônio cultural imaterial e na elaboração de planos de ação de salvaguarda desse patrimônio.


É imperioso que a ação de políticas e regulamentos nesse sentido observem com mais atenção a questão de gênero, priorizando a mobilização das próprias mulheres, de suas comunidades e dos organismos nacionais e internacionais. Caso contrário, o quanto verdadeiramente democrático e participativo é este processo?


A icônica frase de Simone de Beauvoir “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” ganhou, nas últimas décadas, diferentes significados e apropriações, agindo como uma espécie de discurso-símbolo da luta pelos direitos das mulheres e do entendimento das relações de gênero nas sociedades contemporâneas. Espera-se que tal frase possa igualmente mobilizar uma relação justa, abrindo espaço para o reconhecimento de que existem conflitos de gênero também no âmbito do patrimônio cultural imaterial e possibilitando a construção de soluções que contribuam para que não se perpetue a desigualdade de gênero nesse âmbito.


Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e sócia-fundadora do escritório Studio Mattes


Luana de Carvalho Silva Gusso é Doutora em Direito do Estado pela UFPR, Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos e Ius Gentium Conimbrigae – Universidade de Coimbra – Portugal, Professora do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville-SC e do Curso de Direito – Univille. Advogada

Notas


[1] SMITH, L. “Heritage, Gender and Identity”, in GRAHAM, B. e HOWARD, P. (editors), The Ashgate Research Companion to Heritage and Identity, Routledge, 2008, p. 14.

[2] BLAKET, J. “Gender and Intagible Cultural Heritage”, in Gender Equality Heritage and Creativity, Unesco, 2014.

[4] COLELLA, S. “Not a mere tangential outbreak: gender, feminism and cultural heritage”, in Capitale culturale, n. 18, 2018, pp. 251-275.

[5] BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução Maria Helena Kuhner. 2. ed. Bertrand Brasil, 2002.

[6] “Atualmente quem organiza o Círio e a Festa de Nazaré, desde suas primeiras manifestações, com a missa do mandato, até́ o seu término, com o recírio, é a diretoria da festa, constituída por 35 representantes de vários segmentos da sociedade local. Cada diretor é responsável por determinados aspectos da organização da festa, havendo entre eles um presidente, eleito por dois anos. Todo o trabalho é feito, porém, sob a supervisão do pároco de Nazaré́. A diretoria trabalha durante o ano inteiro, mas quando se aproxima a data do Círio passa a se reunir todas as noites”, Dossiê IPHAN - Cirio de Nazaré, p. 62, documento disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImDos_Cirio_m.pdf.

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