A reforma tributária aprovada em 2023 representa uma das mais significativas mudanças no sistema fiscal do país nas últimas décadas. A alteração constitucional, fundamentada na Emenda Constitucional nº 132, visa simplificar o complexo (e confuso) sistema de tributos indiretos atualmente em vigor no país. Serão substituídos diversos impostos federais (PIS, COFINS), estaduais (ICMS) e municipais (ISS) por um único Imposto: o IVA dual (Imposto sobre Valor Agregado), subdividido em dois tributos, quais sejam, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Essa simplificação tende a reduzir a burocracia, eliminar as bitributações, promover segurança jurídica, aumentar a previsibilidade e melhorar a transparência de modo a promover um ambiente de negócios mais competitivo, devido à histórica dificuldade em gerenciar a imensa gama de tributos e obrigações acessórias incidentes sobre o consumo. A reforma promete um impacto abrangente em diversos setores, incluindo o artístico e cultural, e pode representar tanto desafios quanto oportunidades.
De fato, a reforma tributária pode facilitar a administração financeira das instituições culturais, que frequentemente enfrentam dificuldades para cumprir com as complexas e múltiplas exigências tributárias. No entanto, há preocupações de que a nova estrutura de impostos possa elevar a carga tributária para atividades culturais, que antes se beneficiavam de regimes especiais ou mesmo de isenções fiscais, a exemplo das isenções incidentes no ISS e do ICMS em operações de licenciamento e cessão de direitos.
No que diz respeito às alíquotas, a reforma prevê que diferentes setores poderão ter alíquotas distintas, atendendo às especificidades de cada um. O campo cultural, que historicamente tem sido beneficiado por incentivos fiscais, pode ser diretamente impactado por essa mudança, visto que o imposto municipal (ISS) e o estadual (ICMS), por meio dos quais estados e municípios realizam incentivos fiscais à cultura, deixarão de existir.
Isso, em tese, pode impactar negativamente em importantes programas de incentivos fiscal à cultura que ocorrem em todo país, como o PROAC em São Paulo, o Mecenato do Ceará e a Lei “Robin Hood” (18.030/2009), de Minas Gerais. No entanto, a saída para esse grande apagão do fomento indireto à cultura está justamente na regulamentação da reforma tributária, ou seja, nos projetos de lei que atualmente tramitam no Congresso Nacional.
Não parece adequado imaginar que os entes federados simplesmente aceitariam eliminar suas leis de incentivo fiscal à cultura sem qualquer outro benefício fiscal em troca. O setor artístico e cultural movimenta milhões todos os anos e o incentivo fiscal realizado por estados e municípios traz benefícios não somente para a sociedade civil, mas também para os próprios entes federados, com aumento da economia criativa e arrecadação tributária local.
Nesse sentido, há grande expectativa de que o setor cultural possa, através da regulamentação da reforma tributária, negociar alíquotas mais baixas ou receber tratamento tributário diferenciado, reconhecendo a importância da cultura para o desenvolvimento social e econômico do país. Não obstante, a definição dessas alíquotas e a concessão desses benefícios, que substituiriam os atuais incentivos fiscais para cultura previstos nas leis estaduais e municipais, dependem dessa regulamentação. Assim, muito mais estratégico do que alardear o fim dos incentivos fiscais à cultura é compreender como eles continuarão a existir no novo cenário fiscal do país.
O Projeto de Lei Complementar nº 68, por exemplo, que visa regulamentar o IBS, CBS e o chamado Imposto Seletivo, está em debate no Senado (atualmente na Comissão de Constituição e Justiça), passível de diversas alterações e ajustes até sua aprovação final, como é comum em toda norma, especialmente em uma dessa relevância. A lei que regulamentará o Imposto de Renda a partir da reforma tributária (que também trará impactos no campo cultural, especialmente na Lei Rouanet) tampouco está definida. Há, pois, um campo de indefinições ainda passível de debates e ajustes, com nítidas possibilidades de avanços para o setor artístico e cultural.
Diante desse cenário, é fundamental o acompanhamento, pelo setor artístico e cultural, da tramitação desses projetos de lei que afetarão diretamente o setor. Um deles, por exemplo, é a proposta de emenda ao PL 68/2024, apresentada pelo Senador Fabiano Contarato, que prevê, dentre outras alterações, a possibilidade de o contribuinte destinar parte do valor do saldo positivo de IBS apurado para projetos culturais credenciados pelas Secretarias estaduais e municipais de cultura, trazendo um importante benefício para o setor.
Outro aspecto relevante da reforma é a criação de um Fundo de Desenvolvimento Regional, que tem como objetivo reduzir as desigualdades regionais e promover investimentos em áreas menos desenvolvidas. Esse fundo poderá ser uma fonte importante de recursos para projetos culturais em regiões de vulnerabilidade social, contribuindo para a descentralização do incentivo à produção cultural no Brasil. A cultura, nesse contexto, pode ser vista como uma ferramenta estratégica para o desenvolvimento regional, capaz de fomentar a economia criativa e gerar emprego e renda.
A reforma também traz mudanças no que diz respeito à tributação de serviços digitais, o que pode impactar significativamente a indústria cultural, especialmente no que tange à distribuição de conteúdo digital, como música, filmes e livros. A CBS poderá incidir sobre plataformas de streaming, e-books, e outros serviços digitais, o que poderia, a princípio, elevar os custos para os consumidores e criadores de conteúdo. No entanto, se implementada de maneira equilibrada, essa tributação também poderá criar um ambiente mais justo para que produtores nacionais possam competir com os grandes players internacionais, uma luta histórica do setor audiovisual.
Há também um debate intenso sobre o impacto da reforma tributária nas doações e patrocínios culturais. O sistema atual permite que empresas e indivíduos deduzam parte do imposto de renda, incentivando investimentos privados na cultura. Com a reforma, há incertezas sobre como esses incentivos serão mantidos ou adaptados, especialmente considerando a transição para um sistema de IVA. Aqui existe um receio de que mudanças nos mecanismos de dedução possam reduzir o fluxo de recursos privados para o setor cultural.
Como visto, a reforma tributária, ao promover maior eficiência e simplificação, pode ter um impacto positivo no médio e longo prazo para o campo artístico e cultural, ao liberar recursos para investimentos diretos na produção e fruição. No entanto, o sucesso dessa reforma para o setor artístico e cultural dependerá de uma implementação cuidadosa, por meio da legislação atualmente em elaboração no Congresso Nacional, que leve em conta as especificidades e as necessidades do setor, especialmente como importante motor da economia do país.
André Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Unifor, com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor, professor de Direito e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais
Cecilia Rabelo, advogada, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Culturais
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