O Sistema Nacional de Cultura e o papel estratégico da União como coordenadora da Federação
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Cecilia Rabelo é advogada, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Culturais
Vitor Studart é advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Direito Constitucional

Embora previsto na Constituição Federal desde 2012, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) só ganhou a sua lei regulamentadora, a Lei nº 14.835, em 2024. Logo em seu artigo 8º, inciso I, a norma atribui à União a responsabilidade de implantar, coordenar, gerir, manter e desenvolver o SNC. Contudo, para compreender essa disposição, é fundamental analisá-la sob a ótica dos direitos culturais e da política pública de cultura delineados em nossa Carta Magna.
A partir dessa perspectiva, é necessário compreender que tanto a cultura quanto a proteção do patrimônio cultural são matérias de competência legislativa concorrente (art. 24, incisos VII e IX da CF). Isso significa que, sobre esses temas, cabe à União a elaboração da norma geral, estabelecendo as diretrizes para os demais entes, aos Estados e DF a legislação suplementar, e aos Municípios a criação de leis que atendam aos interesses da localidade (art. 24, §1º a 4º e art. 30, I da CF).
Não obstante, com “todo mundo fazendo a mesma coisa”, isso não poderia gerar um “certo caos”, como bem salienta o professor Humberto Cunha? [1]
Neste ponto, cabe distinguir o duplo papel exercido pela União na Federação Brasileira. Ao mesmo tempo em que ela é um ente federativo, em pé de igualdade com os demais (Estados, DF e Municípios), todos autônomos entre si (art. 18 da CF), a União também age como verdadeira “coordenadora da Federação” [2], orquestrando os interesses de todos os entes federados (inclusive o dela mesma), mantendo a união indissolúvel do Estado brasileiro (art. 1 da CF).
É exatamente através da elaboração das normas gerais que a União exerce esse papel estratégico de coordenar a Federação, estabelecendo as normativas orientadoras que balizarão as políticas públicas de cultura em todos os entes, inclusive ela mesma ao elaborar suas normas federais (daí a distinção entre norma nacional, que obriga todos os entes, e norma federal, que obriga apenas o ente federado União).
Essa estrutura de funcionamento do Estado brasileiro respeita a forma federativa estabelecida pela Constituição Federal, garantindo a autonomia dos entes, e influencia, por óbvio, a própria organização do SNC. Nesse sentido, é fundamental compreender que o Sistema Nacional de Cultura engloba o Sistema Federal de Cultura, os Sistemas Estaduais de Cultura, os Sistemas Municipais de Cultura e o Sistema Distrital de Cultura.
De acordo com o art. 15 da Lei nº 14.835/2024, os órgãos gestores são órgãos ou entidades do Poder Executivo responsáveis pela área da cultura e encarregados da gestão e da coordenação do respectivo sistema de cultura. Nessa lógica, cada órgão gestor responde por seu próprio sistema de cultura. Assim, o Ministério da Cultura faz a gestão do Sistema Federal, as Secretarias Estaduais fazem a gestão dos seus respectivos Sistemas Estaduais, a Secretaria do DF gere o Sistema Distrital e as Secretarias Municipais fazem a gestão dos Sistemas Municipais.
A partir dessa compreensão, não é adequada a ideia de que a União seria a única responsável pela implantação, coordenação, gestão, manutenção e desenvolvimento do SNC. Ao contrário, a leitura da Lei nº 14.835/2024 a partir das disposições constitucionais, leva à conclusão de que o SNC deve ter sua implantação, coordenação, gestão, manutenção e desenvolvimento pactuados entre todos os entes federados, liderados pela União em seu papel de articulação interfederativa.
O local adequado para que essa articulação interfederativa aconteça é, sem dúvida, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), elemento do SNC (art. 216-A, §2º, IV da CF) que concretiza os princípios da cooperação entre os entes federados (IV), da garantia de suas autonomias (VIII) e da descentralização articulada e pactuada da gestão (XI) (art. 216-A, §1º da CF). As Comissões Intergestoras têm desempenhado um papel estratégico em outros sistemas de políticas públicas, tais como os da saúde e do meio ambiente, e podem servir de inspiração valiosa para o funcionamento da CIT do SNC.
É certo que essa pactuação interfederativa, realizada no âmbito da CIT, não anula a possibilidade de ações independentes em cada um dos subsistemas de cultura que compõem o SNC, dada a forma federativa do Estado brasileiro, garantidora da autonomia dos entes. Necessário, portanto, equilibrar a pactuação interfederativa com essa autonomia, articulando interesses da União, Estados, DF e Municípios para fins de operacionalização do SNC.
Essa organização do SNC entre os entes federados promove a complementaridade e a distribuição de tarefas entre os órgãos gestores, almejando uma maior eficiência nas ações, bem como evitando sombreamento de atividades, aprimorando a gestão pública de cultura e viabilizando uma política pública de cultura democrática, permanente e pactuada, como aduz o artigo 216-A da CF.
A implantação, a coordenação, a gestão, a manutenção e o desenvolvimento do SNC são, portanto, tarefas a serem realizadas pela União em pactuação com Estados, DF e Municípios, em uma concretização da forma federativa brasileira, dando ao Sistema Nacional de Cultura a forma colaborativa, descentralizada e participativa preceituada pela Constituição Federal, objetivando o pleno exercício dos direitos culturais.
Notas:
[1] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Federalismo Cultural e Sistema Nacional de Cultura: contribuição ao debate. Fortaleza: Edições UFC, 2010, p. 21 e 26.
[2] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2022, 16 ed. p. 904.
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