Reforma tributária: fim ou recomeço do fomento à cultura?
- Blog Opinião
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Cecilia Rabelo é advogada, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Culturais
Mário Pragmácio é advogado, professor de Legislação de Incentivo à Cultura do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense

Muito se tem falado sobre a reforma tributária e o seu impacto no incentivo fiscal de Estados e Municípios ao setor cultural. Isso porque, com a alteração constitucional, o ICMS e o ISS, impostos utilizados respectivamente por Estados e Municípios para incentivar a cultura, serão substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e, com isso, as atuais leis de incentivo fiscal estaduais e municipais deixarão de “funcionar”.
O IBS será um imposto de competência compartilhada entre Estados e Municípios. Isso significa que o Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não mais poderá decidir sozinho sobre o que fazer com o dinheiro relativo ao seu imposto (até porque não é mais “só dele”, mas compartilhado com todos os demais Estados e Municípios). As regras acerca do IBS serão definidas em uma lei complementar específica e as demais questões serão resolvidas por um Comitê Gestor que, em tese, deverá refletir os interesses de todos os entes.
Além disso, a própria Constituição Federal diz que, em relação ao IBS, não serão concedidos incentivos ou benefícios financeiros ou fiscais (artigo 156-A, X), minguando a possibilidade de existência dos incentivos fiscais à cultura estaduais e municipais, da forma como funcionam hoje. Isso não significa, no entanto, que o fomento à cultura no âmbito dos Estados e Municípios será extinto com o advento da reforma tributária.
O que, de fato, deixará de existir é o incentivo fiscal estadual e municipal à cultura, nos moldes atuais, que se dá por meio da renúncia aos valores que seriam arrecadados em prol de um projeto cultural. Na lógica do incentivo fiscal, ao invés do dinheiro do imposto entrar no “cofre público”, ele vai direto para o projeto cultural. Ainda que o projeto cultural seja previamente analisado e aprovado pelo Poder Público, é certo que a decisão de destinar ou não o “dinheiro do imposto” para o projeto é do contribuinte, ou seja, do setor privado.
Desde os anos 1990, esse é o modelo que vem imperando no sistema de financiamento à cultura no Brasil, tendo a Lei Rouanet – que é federal – como a principal representante dessa forma de incentivo. Não é de hoje que o incentivo fiscal à cultura, da forma como se configurou no Brasil, é criticado por deixar a destinação de recursos públicos “nas mãos” do setor privado, que, na maioria das vezes, não aporta nenhum valor de recursos próprios (por isso nos recusamos a usar a alcunha de “mecenato”) e ainda agrega valor à sua marca. Na prática, os projetos com maior capacidade de dar retorno de marketing é que conseguem obter o incentivo fiscal, em uma lógica de mercado que não tem obrigação de seguir qualquer política pública de cultura ou princípios de direitos culturais.
Aqui, é importante ressaltar que o incentivo fiscal não é o “vilão” da história. Ele é importante e tem um propósito específico de fomentar certos projetos culturais. O que queremos é desnaturalizar a forma como o financiamento à cultura é feito no país. Entendemos que o maior desafio da atual modelagem de uma política pública de fomento à cultura no Brasil é que, pelo menos até 2020, boa parte do fomento público era, praticamente, pautado em incentivo fiscal, seja em âmbito federal, estadual ou municipal. Apenas a partir da Lei Aldir Blanc, e progressivamente com as demais leis de fomento direto à cultura, é que essa balança começou a ser equilibrada, dando mais oportunidades a projetos que não atendem à lógica de mercado do incentivo fiscal.
Então, porque, ao invés de nos preocuparmos unicamente com o fim do incentivo fiscal à cultura em estados e municípios, não aproveitamos o momento para desenhar um novo fomento à cultura no Brasil, que seja orientado pelo pleno exercício dos direitos culturais e pelas políticas públicas de cultura?
O fato de o IBS não poder ser objeto de benefícios fiscais apenas significa que os Estados e Municípios não poderão renunciar ao valor desse imposto para fins de incentivo fiscal. Mas, uma vez a arrecadação do imposto fazendo parte do orçamento, a decisão de destiná-lo a projetos culturais é meramente política, e de competência, sim, de cada um dos entes da federação.
Cada Estado e Município, por serem autônomos, detêm competência para dizer o que vai fazer com o dinheiro que entra no seu cofre. Ora, uma vez arrecadado o IBS, o recurso se torna orçamento público e, com isso, poderá ser destinado mediante lei estadual e municipal, conforme seus interesses legítimos e políticas locais. Por que não pensar na destinação legal desse recurso para os Fundos municipais e estaduais de cultura para apoio a projetos culturais, por exemplo?
Não se está aqui defendendo a vinculação tributária de imposto, o que somente é possível mediante alteração na Constituição Federal. O que se está argumentando é que, com a reforma tributária impactando diretamente o incentivo fiscal à cultura feito por estados e municípios, talvez seja a oportunidade de repensar o sistema de financiamento à cultura como um todo, com a criação de leis estaduais e municipais específicas para o fomento direto, ampliando os mecanismos de apoio à cultura e dando conta da multiplicidade de demandas do setor.
Não ignoramos a dificuldade de redesenhar o fomento à cultura no Brasil. Pode parecer difícil e estranha essa mudança, pois estamos operando dentro dessa lógica de renúncia fiscal há décadas e há muitos interesses envolvidos na manutenção dessa estrutura, mas o momento é propício e urgente, considerando que está em curso uma reforma tributária e uma possibilidade de repensar o fomento no país. Afinal, o que podemos fazer diante da reforma tributária? Apenas lamentar o fim do incentivo fiscal ou repensar a estrutura do financiamento público à cultura no Brasil?
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