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Realizar os Direitos Culturais



Venho chamando de sebastianismo cultural uma tendência de certa parte da militância do mencionado setor, que consiste em fuga da realidade, quando da proposição de políticas públicas a ele concernentes. Mas esse fenômeno não se apresenta solitário; é compartilhado por outro, caracterizado por uma espécie de esquizofrenia identitária, em que as políticas surgem por grotesca imitação de outros campos bem sucedidos, porém, distintos; disto decorre, por exemplo, a configuração constitucional do Sistema Nacional de Cultura, como se fosse um avatar do Sistema Único de Saúde, sendo que entre ambos quase nenhuma semelhança há; ou a Lei Aldir Blanc, numa parte replicadora da legislação geral da pandemia, na outra, uma reprodução do burocrático e discutível sistema de editais, que é propício, sim, à ciência e à tecnologia, campos estes que têm lógicas distintas da cultura.


Ao que divulgam, a próxima ilusão para a qual a comunidade cultural será convidada, vai ser a de os municípios brasileiros criarem suas próprias cartas ou declarações de direitos culturais, isto, claro, por imitação do que fizeram algumas edilidades da América do Norte e da Europa. Tal atitude, além de corresponder a um certo colonialismo (retoricamente tão combatido), parece ser pouco refletida em termos de consciência, adequação, utilidade e viabilidade do que propõem.


A primeira grande consequência da proposta é retirar ou ao menos desconhecer o caráter de direitos humanos dos direitos culturais, pois, como se sabe, os mencionados direitos têm natureza universal e não estritamente local, como logicamente decorre da ideia de municipalizar as declarações de direitos.


Outra problemática é a possível desconsideração ou a acriticidade sobre os contextos normativos das experiências imitadas. Para que se tenha uma ideia, a Carta Magna do México estabelece, logo em seu Art. 1º, “que todas as pessoas gozarão dos direitos humanos reconhecidos nesta Constituição e nos tratados internacionais”, ademais, salienta que “fica proibida toda discriminação motivada por origem étnica ou nacional”, o que leva à conclusão de que tais cartas ou declarações municipais não podem inovar a substância dos direitos humanos reconhecidos nas instâncias constitucionalmente especificadas.


Semelhante é no Brasil, cujo Art. 24 da sua Constituição compartilha as competências legislativas entre União e Estados, inclusive com especificação da matéria “Cultura”, acentuado, no Art. 30, IX, a competência dos Municípios de “promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”.


Mesmo que fosse possível abstrair ou superar os problemas apontados, a proposta corre o risco de ser um déjà vu insuperável, daquele tipo que não apenas faz repetir as atitudes, mas impede de progredir para novos momentos e atos. Isso deve ser evitado a todo custo, pois a fase das declarações de direitos há muito demanda outras, como a da positivação (especificação em leis), e principalmente, agora, a da realização, ou seja, da concretização dos direitos culturais, pois com advertiu Norberto Bobbio, em sua A Era dos Direitos, “O ethos dos direitos humanos resplandece nas declarações solenes que permanecem quase sempre, e quase em toda parte, letra morta”.


Certamente, esta é a razão de as Declarações (instrumentos de reconhecimento), na contemporaneidade, virem seguidas de Convenções (instrumentos de aplicação), às quais são agregados Planos de Ação, com prazos, indicação de recursos e autoridades executivas, tanto para as instituições internacionais como para o âmbito de cada Estado-Parte, porque aflorou a consciência, traduzida por Bobbio no epílogo da mencionada obra, de que “os direitos de que fala [a era dos direitos] são somente os proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto os direitos de que fala [a massa dos ‘sem-direitos’] são aqueles que a esmagadora maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados)”.


Portanto, é o caso de enfaticamente se dizer: chega de sistemas inflados de vento, de planos verborrágicos, de leis tão belas quanto inexequíveis; chega de ilusionismos retóricos! Quem quiser ajudar na consolidação dos direitos culturais, tem que convidar a cidadania não para novamente declarar ou afirmar tais direitos, mas para realizá-los, mesmo porque somente a práxis de tais direitos nos dirá se a forma como os declaramos foi certa ou equivocada.

Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP).

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