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A cultura como bem mundial e as garantias dos direitos culturais 

(O texto deste artigo constituiu a base de palestra homônima proferida em side event do Mondiacult 2025, promovido pela Fundação Gabeiras - Espanha


Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP)


Esta foto de autor desconhecido está licenciado em cc by-nd
Esta foto de autor desconhecido está licenciado em cc by-nd

 

Há um entendimento no mundo do Direito de que a norma que não pode ser descumprida não é jurídica, exatamente porque não pode ser violada e, portanto, não precisa ser protegida nem recomposta.  

Assim, o Direito convive com a ambiguidade de querer tudo em ordem, mas com o entendimento de que as suas normas são passíveis de violação a qualquer instante, razão pela qual deve cercar-se, ao máximo, de garantias preventivas ou reparadoras dessas violações.  


Diante dessa premissa, é muito difícil que um enunciado do tipo “a cultura é um bem público” se converta — a não ser com muito trabalho, recortes e especificações — em normas jurídicas, no âmbito dos Estados e/ou em nível internacional, pois a cultura é um dado da existência humana em coletividade, com o mesmo status de outros importantes elementos basilares da vida em sociedade, a exemplo da economia e do direito; a cultura é simultaneamente mãe e filha de ambos, com a característica de constantemente se reconfigurar a partir das múltiplas influências de um para com os outros.  


A cultura é, portanto, o resultado do amálgama que criamos para ela, quer gostemos ou não da nossa própria criação. A economia, por seu turno, se guia para enfrentar os problemas prementes da sobrevivência, porém, sem grandes preocupações valorativas. Diferentemente, o direito é a estrutura seletiva dos comportamentos econômicos e culturais que, a partir de valores socialmente eleitos, que são entendidos como importantes para os indivíduos, grupos, sociedades e até para o conjunto da espécie humana; inclusive, pode ir além disso, quando ultrapassa a dimensão do antropocentrismo.  


Essa seletividade do direito, quando realiza recortes de comportamentos sobre a economia, gera proibições, obrigações e direitos econômicos; o que fica fora disso, forma o plano das liberdades no mencionado setor. Seria pouco ou nada compreensível falar de economia, no seu todo, como bem público.


É provável que essa seja a razão de não haver entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) qualquer deles expressamente nesse sentido, o que não significa a ausência de objetivos econômicos, comutáveis em metas exequíveis, como são, dentre outros, os casos dos de nº 1, 8 e 12, que respectivamente são enunciados como “erradicação da pobreza”, “trabalho decente e crescimento econômico” e “consumo e produção responsáveis”.  


Relativamente à cultura, a situação é semelhante: se nos referirmos a ela em seu todo, temos algo gigantescamente inoperável pelo Direito, pois ela é composta de valores, comportamentos e regras antagônicos, incapazes de formar um sistema que, para merecer esse nome, deve impreterivelmente ser ou, quando menos, buscar coerência.  


Deste modo, se na reivindicação de um ODS específico, se se preferir usar a palavra cultura é imperioso saber que isto é feito a partir de figuras de linguagem que promovem reduções, sendo a mais comum delas a metonímia, que, dentre suas possibilidades, refere-se à parte, mencionando o nome do todo. Seria o caso, por exemplo, de fazer reivindicações para as artes ou para o patrimônio cultural sem usar especificamente essas expressões, preferindo o uso da matriz comum a ambos os campos, que é a cultura.  


De fato, muito se fala que não há ODS diretamente relacionado à cultura, o que é correto, mas apenas nominalmente; porém, se lembrarmos da segunda onda, dimensão ou geração dos direitos humanos, que no plano interno de muitos países gerou as chamadas constituições sociais e no plano internacional produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a grande estrela dos direitos culturais, num planeta assolado pelo analfabetismo, era a Educação, regida pelo objetivo de universalização, no seu nível fundamental, com as previsões das garantias de ser obrigatória e gratuita. Agora, o ODS 4 eleva a questão a um patamar além do quantitativo, quando pugna por “Educação de qualidade”.  


Para as pessoas que trabalham na área, nenhuma palavra é mais saborosa que “cultura”, não há outra que mereça mais reverências, aproximando-se do nível do sagrado. E por falar em sagrado, é possível afirmar que no âmbito das divindades que compõem as mais próximas e conhecidas mitologias, não há deus ou deusa que abranja todo o universo cultural, mas partes específicas dele; nas mitologias grega e afro-brasileira, por exemplo, Atena e Oxum cuidam das artes; Mnemosine e Iemanjá se encarregam da memória e da continuidade cultural; Hefesto e Ogum tratam da tecnologia, e assim por diante.  


É belíssimo o tema da cultura como bem mundial, é um mote agregador muito potente, mas devemos incorporar a ele uma dimensão pragmática, especificando as necessidades mais prementes, de maneira a transformá-las em reivindicações jurídicas e políticas que lhes possam dar concretude.  


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