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A dignidade cultural na doutrina ocidental 

Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP) 

 

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Em artigo anterior, designado “Manifesto em favor da dignidade cultural”, chegamos à conclusão de que a legislação vigente, seja de âmbito nacional (do Brasil) ou internacional (a emanada da ONU e suas agências) não contém interpretação autêntica, assim designada aquela que é feita pelo próprio legislador da expressão, “dignidade cultural”. 


Situação diametralmente oposta pode ser verificada no âmbito da doutrina, em que o mencionado termo composto tem uma presença oceânica, o que se pode afirmar pelo fato de que pesquisa feita em única base de dados, a Academia.edu, realizada em 20 de setembro de 2025, aplicando-se o argumento nos idiomas português, espanhol, italiano, francês e inglês, em poucos minutos permitiu o acesso a nada menos que 2.815 trabalhos, entre artigos, livros e monografias, alguns dos quais datam de afastados anos do século XX, que fazem uso da expressão “dignidade cultural”. 


Uma constatação prévia dá conta de que o uso do termo não se faz acompanhar de uma definição, o que induz à inferência de que ele se torna compreensível somente a partir do contexto de sua utilização, permitindo grande variação cognitiva, conforme passa a ser averiguado a partir de trabalhos mais antigos, um por cada idioma em que foi feita a pesquisa, critério escolhido porque as obras eleitas podem indicar pioneirismo no trato do tema. 


No ano de 1974, fazendo uso da língua inglesa para apresentar sua tese doutoral junto à Universidade de Glasgow, Abdul Ghafur Muslim fez referência à “cultural dignity” da população muçulmana, que teria sido afetada com efeitos adversos em virtude do declínio do Império Mongol [1].  


No mundo francofônico, em 1976, ninguém menos que Pierre Bourdieu, compartilhando autoria de trabalho com Monique de Saint Martin [2], fez uso da expressão “dignité culturelle” para advogar que este valor somente pode ser defendido em face da cultura e das classes dominantes, a partir da tomada de consciência política. Esse discurso se projetará para outras obras mais conhecidas no Brasil, assinadas pelo primeiro autor, como é o caso de Economia das Trocas Simbólicas [3]


Dois anos depois, portanto, em 1978, Oswald Spengler, escrevendo na língua creditada a Dante, emprega “dignità culturale” em sentido quase oposto ao usado por Bourdieu (cuja obra guarda influências do pensamento marxista), uma vez que a associa à ideia de elevação cultural, encontrada no espectro político da direita italiana [4]


Saltando aproximadamente uma década, na língua mundialmente projetada por Cervantes, Antonio R. Bartolomé, fazendo referência à obra de Santos Guerra, datada de 1984, utiliza-se da expressão sob estudo para indicar uma hierarquização de respeitabilidade entre as expressões artísticas, ao referendar que “Para los intelectuales, cine y televisión no gozan de suficiente dignidad cultural” [5]


No Brasil, no - para mim - pouco conhecido e curioso universo da etnomatemática [6], uma abordagem da Matemática desenvolvida pelo brasileiro Ubiratan d’Ambrósio, nos anos 1980, que reconhece e valoriza os saberes deste campo desenvolvidos por diferentes culturas ao longo da história. O mencionado autor propõe que a Matemática não é uma ciência universal e neutra, mas sim uma construção cultural que assume formas distintas conforme o contexto social. 


Tributária deste pensador, Lisete Bampi obteve o título de Doutora em Educação aprofundando o estudo do conceito, destacando excertos da obra de d’Ambrósio, em que a ideia de “dignidade cultural” é uma chave de relevância. No parágrafo adiante transcrito, nota-se a presença de muitos elementos capazes de fornecer subsídios para uma definição jurídica do tema: 


“É próprio aos objetivos da Etnomatemática proporcionar cidadania aos indivíduos com vistas a superar o ‘processo de negação e exclusão das culturas da periferia, tão comum no colonialismo’; a incluir os ‘amplos setores da população’ que ‘são negados e excluídos de uma cidadania total’; a construir ‘uma civilização que rejeita a iniquidade, a arrogância e o fanatismo’ por uma educação que ‘deve dar especial atenção à redenção das culturas que têm sido por um longo tempo subordinadas’; a promover o ‘empowerment dos setores excluídos da sociedade’ por uma etnomatemática apresentada para ‘restaurar a dignidade cultural’ por ‘oferecer ferramentas intelectuais para o exercício da cidadania’ (D’Ambrósio, 1999, p.51). 


Vê-se, assim, que as preocupações doutrinárias para com a “dignidade cultural” já contam, quando menos, com meio século; todavia, são caóticas e multidirecionais, porque o termo é usado como uma espécie de coringa retórico, que supre lacunas ideológicas cujos significados não são previamente compartilhados.  


Este quadro, no momento que se vêm o ressurgimento das guerras e o ataque impiedoso à diversidade cultural, é mais do que oportuno para que seja reiterado o convite para a construção, agora consciente, de um manifesto em favor dela, a “dignidade cultural”. 


Notas:           


[1] JIUSLIM, Abdul Ghafur. The Theory of Interest in Islamic Law and the effects of the interpretation of this b the Hanafi School up to the End of the Mughal Empire. University of Glasgow: 1974, p. 135. 

 

[2] BOURDIEU, Pierre ; DE SAINT MARTIN, Monique. Anatomie du gout. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 2, n°5, octobre 1976. Anatomie du goût. pp. 2-81 

 

[3] BOURDIEU, Pierre: A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. 

 

[4] SPENGLER, Oswald. Il Tramonto Dell’Occidente: Lineamenti di una morfologia della Storia Mondiale. Parma: 1978, p. XXXVII. 

 

[5] BARTOLOMÉ, Antonio R. (1987). Análisis de la producción y aplicación de programas audiovisuales didácticos. Tesis doctoral. Barcelona: Universitat de Barcelona. http://hdl.handle.net/10803/2360 . 

  

[6] D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo: Ática, 1993. 

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