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Quando a forma subverte a finalidade

Atualizado: 5 de ago. de 2020

Que o fomento à cultura é um dever do Estado é algo já consolidado, ao menos abstratamente, pela Constituição Federal, a norma mais importante do país, ou ao menos a que deveria ser. No entanto, os mecanismos de realização dessa tarefa nunca foram claros no âmbito federal, e vão ficando cada vez mais confusos quando chegamos aos âmbitos estadual e municipal.


O fato é que o Direito Administrativo, que é quem deveria regular tal matéria, se omite nessa tarefa. Repassar recursos públicos para o incentivo e apoio às diversas linguagens artísticas e culturais, competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 23, inciso V da Constituição Federal), nada mais é do que a realização de atos administrativos, que compõem processos administrativos, regulados, por óbvio, por normas de direito público.


No entanto, por vezes os estudiosos dessa matéria não dedicam tempo para compreender as relações existentes no âmbito do fomento cultural. Ora, se essa é uma tarefa estatal, são as normas de direito público que deveriam reger a matéria e estabelecer os instrumentos e mecanismos adequados para que o recurso público atinja sua finalidade, observados os princípios e regras dispostos nos artigos 215 a 216-A da Constituição Federal, seção dedicada exclusivamente à cultura pela norma maior.

O fato é que as leis espalhadas por todo o país não são claras ao definir quais seriam os instrumentos adequados para a realização do fomento cultural. E não estamos falando aqui simplesmente de incentivo fiscal, tão utilizado – apesar dos problemas estruturais – no âmbito federal e em alguns estados e municípios.


Fomentar a cultura vai – ou deveria ir – muito além de renúncia fiscal. É – ou deveria ser – a transferência direta de recurso públicos para os “fazedores” da cultura. Não, Estado não faz cultura, e nem deve fazer. Cultura vem das pessoas e o recurso público deve garantir que estas continuem – se assim desejarem – se manifestando culturalmente ou artisticamente.


E é exatamente nesse repasse direto que os problemas surgem. Seria uma parceria? Devemos utilizar premiações? Pagar como uma prestação de serviços? Ou seria um cachê? Como deve ser a prestação de contas? Quais os parâmetros para aferir o atingimento da finalidade (o fomento)? Quais as regras para o “gasto” desse recurso pelos fomentados? São três cotações (afinal, de onde tiraram esse número “cabalístico”?).

Na ausência de leis suficientemente claras, específicas e adequadas, especialmente no âmbito estadual e municipal, os órgãos de cultura têm que “se virar” com uma aplicação “torta” – e absolutamente inadequada – de outras normas, como a própria lei 8.666/93 (a famosa lei de licitações e contratos administrativos), que nada tem a ver com fomento ou com cultura, para tentar realizar sua finalidade constitucional de fomentar a cultura, pela simples ausência de “coisa melhor”.


O administrador público fica, por sua vez, entre a cruz e a espada. De um lado, a falta de legislação suficientemente específica e técnica faz com que tenha que se socorrer de aplicações analógicas ou de uma “adaptação” de outras normas, muitas vezes genéricas e distantes da realidade cultural, para fazer com que o recurso público chegue – e chegue bem, de forma célere e eficaz – ao apoio às manifestações culturais.

Do outro lado, estão os órgãos de fiscalização, tais como Tribunais de Contas e Controladorias em geral, que, pouco compreendendo a realidade do setor, por vezes desaprovam essas “adaptações jurídicas” e condenam – e por vezes punem – as tentativas de interpretação do Direito administrativo à luz dos Direitos Culturais.


O resultado é a existência de diversas leis esparsas, federais, estaduais e municipais, que criam outros diversos tipos de instrumentos jurídicos distintos com regras muitas vezes diametralmente opostas, que culminam em uma verdadeira confusão quanto aos mecanismos que devem ser utilizados para a realização do fomento à cultura no país.


A falta de lei específica, devidamente completa, com a previsão de instrumentos próprios – e autônomos – de fomento, que não se resumam ao incentivo fiscal, por óbvio, mas que consigam se adaptar à finalidade da política pública de cultura traçada, à realidade de cada linguagem e localidade, que tenha o rigor necessário, posto que recurso público, mas sem massacrar o indíviduo ou subverter a finalidade do fomento, é um dos grandes problemas da gestão pública de cultura.


O objetivo maior do fomento à cultura não deve ser obter uma prestação de contas perfeitamente planilhada, mas sim ter o músico tocando, a atriz atuando, a quadrilha dançando, as manifestações culturais existindo. Colocar a formalidade acima da finalidade é subverter a própria norma constitucional, que afirma ser dever estatal apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais (art. 215).


Pensar – e repensar – o Direito Administrativo aplicado à política pública de cultura é uma necessidade premente, pois a grande maioria das dificuldades do fomento estatal à cultura tem sua origem, com toda a certeza, na debilidade legislativa. Sem um parâmetro jurídico adequado, é quase impossível realizar uma política pública de cultura eficaz, justa e que efetive os direitos culturais.



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Cecilia Rabêlo

Advogada, Mestre em Direito Constitucional, Especialista em Gestão e Políticas Culturais.

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