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Prestações de contas que não prestam: ANCINE, TCU e o efeito dominó

Atualizado: 28 de nov. de 2020



*Imagem: IPublicDomainPictures; CC BY.


Em junho de 2020, a Agência Nacional de Cinema – ANCINE divulgou uma lista com 168 projetos cujas prestações de contas haviam sido analisadas por ela. Destes, 102 tiveram as contas reprovadas, ou seja, mais de 60%. Na lista, a Agência divulgou o nome tanto da produtora quanto do projeto cujas contas foram reprovadas, mas, estranhamente, não dava a mesma publicidade aos motivos da reprovação.


Mais estranho ainda seria o fato de que diversas das obras reprovadas foram produzidas há quase 20 anos, como o filme “Madame Satã”, que é de 2002, cujos documentos financeiros, apresentados à época, foram agora “desenterrados” para serem avaliados sob a luz de regras e entendimentos de hoje. Mas, afinal, o que teria motivado essa movimentação tão “instantânea” da Ancine, que ainda conta com um passivo de mais de quatro mil projetos sem análise?


Tudo parece ter começado no Tribunal de Contas da União - TCU, com o processo nº 017.413/2017-6 que tinha por objetivo verificar se a metodologia para análise das prestações de contas utilizada até então pela Agência era adequada - a denominada metodologia “Ancine + Simples”, prevista na Instrução Normativa 124.


Segundo o TCU, essa metodologia que autorizava a análise financeira por amostragem - quando apenas projetos com determinadas características ou problemas têm seus documentos financeiros avaliados - e aceitava informações de cunho meramente declaratórios, ofenderia a regra geral de prestação de contas dos recursos públicos.


Em conclusão, o TCU, no Acórdão 721/2019, de 27 de março de 2019, determinou que a ANCINE reavaliasse todos os projetos cujas prestações de contas tivessem sido apreciadas por amostragem, ou seja, sem a análise orçamentária/financeira detalhada, bem como determinou a conferência de todos os documentos comprobatórios de despesas realizadas e a criação de uma nova norma regulamentadora da prestação de contas, em substituição à “Ancine + Simples”.


Em resposta ao TCU, a Agência tomou diversas medidas para tentar amenizar os problemas apontados, tais como a elaboração da Instrução Normativa nº 125/2020 (que revogou a 124), que acaba com a análise da prestação de contas financeira por amostragem e traz diversas outras regras, inclusive bastante questionadas pelas produtoras audiovisuais por serem extremamente rígidas e não compreenderem a lógica de funcionamento do setor.


A criação da Superintendência de Prestação de Contas, com o deslocamento de cerca de 70 servidores para a função sob a direção de um capitão de mar e guerra da Marinha do Brasil, também foi uma das medidas tomadas pela Agência para “prestar contas” ao TCU. É nesse contexto, então, que surge a fatídica lista de projetos reprovados.


Acontece que a “mão de ferro” imposta pela Ancine às produtoras culturais, na ânsia de atender às determinações do TCU, acaba ofendendo direitos básicos dos envolvidos, agentes culturais que apresentaram suas contas à Agência de acordo com a regra da época e agora são surpreendidos com essa análise de documentos quase 20 anos depois, com base em outras regras e sem qualquer aviso prévio.


É certo que nenhum de nós, cidadãos, pode ficar eternamente sob o poder persecutório do Estado. Daí surge, inclusive, a ideia de prescrição, quando alguém perde o direito de agir contra outro.


E isso é ainda mais importante para proteger o indivíduo contra o arbítrio estatal, sob pena de ofensa direta ao devido processo legal e à segurança jurídica, conforme recentemente reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 636.886. É uma regra básica de Direito.


A segurança jurídica parte do pressuposto básico no Estado de Direito: a confiança, que todo indivíduo tem, de que os atos do Poder Público (inclusive suas normas) são legítimos e legais, ou seja, foram emitidos por quem tem competência para tanto e que seguiram devidamente o previsto na lei.


Portanto, se havia uma norma, da própria ANCINE, que previa a análise por amostragem na prestação de contas financeira (Instrução Normativa 124), é presumido, por óbvio, que essa metodologia fosse legítima e legal.


Como poderia então, uma produtora audiovisual, que é obrigada a seguir as regras da ANCINE, e assim o fez na época, ser punida, agora, pelos “erros” do próprio Poder Público?


No efeito dominó, o lado mais fraco dessa cadeia, as produtoras audiovisuais, sofrem os prejuízos e consequências da ineficiência estatal. Uma nítida contradição ao papel primordial do Estado de Direito: a proteção dos direitos básicos do indivíduo contra as “mudanças de humor” do arbítrio estatal.



Cecilia Rabêlo

Advogada, sócia do Saraiva & Rabêlo Advocacia, especializado em Economia Criativa,

Mestra em Direito Constitucional pela UNIFOR e Especialista em Gestão e Políticas

Culturais pela Universidade de Girona/ES, Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais

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