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O fim dos Conselhos de Cultura e a restauração das guildas 

Atualizado: há 17 horas

Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP) 




Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC-BY (Obra de Raimundo Cela)
Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC-BY (Obra de Raimundo Cela)

Em abril de 2025, vivenciei no universo cultural dois episódios que me provocaram tristeza e sentimento de culpa. Um foi relacionado a uma feira de livros, da qual participei presencialmente, e, o outro, uma reunião de um conselho de políticas culturais, que acompanhei anonimamente pela internet. 


Sobre a feira literária, ao divulgar o panfleto nas redes sociais como componente de uma mesa de autores de livros com os temas das políticas e direitos culturais, fui questionado relativamente a quem representava os ditos segmentos socialmente excluídos, o que me deixou em aflição de ser hostilizado no dia da apresentação, pois, tirando velhice, feiura e nordestinidade, eu não tinha condições de representar ninguém; ademais, não tinha mandato, mas apenas um convite. 


Em relação à reunião do conselho de políticas culturais, convocada para ele aprovar uma minuta de projeto de lei, poucas vezes vi algo tão farsesco. Supostamente composto paritariamente entre agentes do poder público e representantes de organizações da sociedade civil, a parte estatal começou dizendo os limites sobre os quais o conselho poderia atuar, alguns dos quais, na melhor das hipóteses, eram errados; na possibilidade mediana, catequéticos; e no outro extremo, mentirosos. 


Iniciados os debates, não se viu qualquer análise conjuntural ou mesmo estrutural do projeto de lei, apenas renitentes reivindicações de poderes e recursos para segmentos culturais, incluindo a proposta de menção expressa a mais de sessenta deles. As temerosas réplicas de aceitação ou de rejeição das proposituras dos conselheiros fizeram-me lembrar a observação de Gloster, ao ver Edgar conduzindo o Rei Lear (Shakespeare), constatando ser “essa é a maldição dos nossos tempos: um louco se transforma no guia de um cego”. [1] 


O quadro me fez refletir que a pretexto de democratizar, o Brasil renunciou aos seus conselhos de cultura, não tendo logrado seu objetivo inicial e, ainda, como efeito colateral, restaurou uma instituição juridicamente banida do país há mais de dois séculos: as corporações de ofícios, também chamadas guildas. 


Convém notar que a principal fonte de autoridade de um conselho de cultura não é jurídica (essa é de quem tem o controle do poder político, incluindo os ditadores), mas de ideias, devendo os componentes ser capazes de interpretar as causas dos problemas atuais, o contexto em que o país se encontra, bem como de propor ações equilibradas, abrangentes e inclusivas. 


Claro que em todas as camadas e grupos sociais há pessoas com essas capacidades, mas no sistema ora vigente aparenta que o critério de eleição de conselheiros é o da maior agressividade nas relações e a acentuada capacidade de pensar apenas no interesse do grupo que cada um representa, com a reivindicação de que suas deliberações sejam majoritárias e obrigatoriamente adotadas. 


O quadro descrito corresponde ao procedimento das guildas medievais, expressamente banidas do direito brasileiro a partir de 25 de março de 1824, pelo Art. 179, XXV, da primeira Constituição do Brasil, que determinou: “Ficam abolidas as Corporações de Ofícios, seus Juízes, Escrivães e Mestres”. [2] 


Já tive oportunidade de escrever sobre o assunto, dando uma noção do funcionamento e do poder das guildas, na seguinte passagem de um dos meus livros: 


Pode-se ter uma dimensão clara dessas prerrogativas a partir do relato que Robert Heilbroner oferece da decisão de uma Guilda francesa sobre uma simples alteração na quantidade de fios empregada na confecção de tecidos, que somente poderia ser levada a efeito “depois que o caso for considerado pelos quatro mercadores mais velhos e os quatro tecelões mais velhos da Guilda”. No mesmo sentido, o “revolucionário” emprego de botões nas roupas provocou “avalanches de protestos” e atos coibitórios por parte das corporações que “demandaram o direito de dar buscas nas casas e guarda-roupas de quem quer que fosse, de multar e até mesmo prender nas ruas quem estivesse usando os tais renegados objetos subversivos”. [3] [4] 


Como se vê, extinguir as guildas foi necessário ao pleno surgimento da estrutura política unificadora do poder, que é o Estado. Não se pode permitir que retornem, via conselhos de cultura, falsamente disfarçadas pelo argumento da diversidade cultural, mas sob a efetiva prática do divisionismo e dos interesses meramente corporativos. Muito menos se pode conceder a elas votos majoritários e poderes vinculantes, pois isso equivale, na prática, a não se ter qualquer aporte de ideias às políticas culturais, de um lado, e de outro, à usurpação da soberania popular. 

 

Notas:  


[1] Shakespeare, William. Box Grandes Obras de Shakespeare (27 peças: Hamlet, Rei Lear, Romeu e Julieta, Otelo, O Mercador de Veneza, Sonho de uma Noite de Verão...) (Portuguese Edition) (p. 1793). Mimética. Edição do Kindle.  



[3] Robert Heilbroner, A história do pensamento econômico, São Paulo: Nova Cultural, 1996, pp. 32-3  


[4] Cunha Filho, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: Fundamentos e finalidades (Portuguese Edition) (p. 71). Edições Sesc SP. Edição do Kindle. 

 

 

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