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Censura na história constitucional do Brasil



O país que hoje o mundo conhece por Brasil, antes da chegada dos portugueses, em 1500, era chamado por alguns dos povos autóctones de Pindorama, que significa “terra das palmeiras”. No momento inicial, os europeus imaginavam ter chegado a uma ilha, à qual deram o nome de Ilha de Vera Cruz, porque o comandante da expedição, Pedro Alvares Cabral, se dizia portador de um fragmento da verdadeira cruz na qual Jesus Cristo havia sido crucificado.


O primeiro ato de aproximação coletiva dos povos dos dois continentes consistiu em uma missa, na qual “índios” nus, “com as vergonhas expostas” e corpos pintados tentavam entender o que se passava, bem como descobrir se cada uma daquelas pessoas completamente escondidas em panos eram homens ou mulheres.


É bem provável que ninguém cogitasse que as pinturas corporais dos índios eram artísticas, e muito menos que 500 anos depois viessem a ser consideradas patrimônio cultural da humanidade, como efetivamente reconheceu a Unesco com a Arte Kusiwa do povo Wajãpi. Todavia, a mescla dos elementos referidos, como nudez, vestimentas, religião, valores diferentes, impregnaram desde então - e persistem até hoje - na forma como as manifestações culturais são vistas no Brasil, quase sempre tolhidas ou ameaçadas de censura.


Saltando muito no tempo, mais de 300 anos, o Brasil se tornou independente de Portugal, razão pela qual, desde 1824 é regido por Constituições próprias, as quais já atingiram o número de oito; todas elas, de algum modo, disciplinaram a censura das atividades artísticas.


As duas primeiras Constituições do país, a imperial de 1824 e a republicana de 1891, tinham em comum a fortíssima adesão aos preceitos do liberalismo, razão pela qual, mesmo distantes 65 anos uma da outra, estamparam, ambas, idêntica norma: “Nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria, ou comércio pode ser proibido, uma vez que não se oponha aos costumes públicos, à segurança, e saúde dos Cidadãos”. Além de à época as Constituições valerem menos que os códigos, o “costume público” era o elemento de justificação do controle artístico.


A meteórica Constituição de 1934, sem meias palavras, prescrevia que “Não será obstada a circulação de livros, jornais ou de quaisquer publicações, desde que os seus autores, diretores ou editores os submetam à censura”. Se nesta redação percebe-se algum pudor em falar primeiro da liberdade e somente depois da censura, embora a realidade fosse exatamente o oposto, a Constituição de 1937, não teve cerimônias em termos censórios, ao estabelecer que “todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente, ou por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei”, o que incluía “a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação”, tudo isso para supostamente garantir valores como a paz, a ordem, a segurança das pessoas, a moralidade, os bons costumes, a infância, a juventude, o interesse público, o bem-estar do povo e a segurança do Estado.


As artes não passaram incólumes nem mesmo pela iluminada e aristocrática Constituição de 1946, na qual há o preceito de que “É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas...”. Quanto à “publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe”.


Essa mesma fórmula foi reiterada pelas duas Constituições do regime militar, ou seja, pela Constituições de 1967 e de 1969, com a diferença de que a repressão foi intensa e transbordou todos os limites do razoável e do que estava normativamente estabelecido, pois além de uma estrutura reforçada de censura oficial, haviam as perseguições clandestinas, que compreendiam prisões, exílios e até mortes de artistas.


A Constituição de 1988, a primeira efetivamente elaborada a partir de um processo democrático, no capítulo relativo aos direitos fundamentais, estabeleceu que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e na seção dedicada à comunicação social reforçou que “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Mas não parou aí, ao tratar dos direitos culturais determinou que “A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”, ou seja, além de não poder censurar, o Estado deve incentivar as manifestações culturais, mesmo aquelas que não agradem aos gestores, desde que dentro dos critérios legais.


Todavia, um simples cálculo aritmético faz perceber que o novo regramento constitucional não é pacificamente aceito na vida brasileira, afinal, são 488 anos de censura contra pouco mais de três décadas das liberdades culturais, no plano normativo. Há, portanto, um atavismo de quase meio milênio, segundo o qual as autoridades e a sociedade conviveram com a ideia de controle do conteúdo e da forma das expressões artísticas, o que reverbera até hoje e continua a gerar embaraços indesejáveis.


A boa notícia é que a “constituição cultural”, um dos codinomes da atual Constituição, vem se firmando em assegurar as liberdades artísticas quando estas, de forma direta ou indireta, são atacadas. Na defesa das artes destaca-se sobretudo a atuação do Poder Judiciário, em particular do Supremo Tribunal Federal, em casos que se tonaram notórios, alguns dos quais passam a ser genericamente mencionados, escolhidos por conterem elementos de censura direta ou indireta.


Os atos censórios mais comuns continuam a ser os decorrentes de inconformismos religiosos para com as criações artísticas, sobremodo quando são feitas alusões à sexualidade ou à moral de alguma divindade; para conquistar o apoio de outras pessoas, os “novos censores” evocam argumentos supostamente leigos, mas sempre em torno da ideia de bons costumes, sobretudo de grupos vulneráveis, com preferência para crianças e adolescentes.


Muito comum também é a negativa de apoio, seja de recursos financeiros ou de simples espaços para manifestações culturais, realizada sobretudo por leis estaduais e municipais, que usualmente são declaradas inconstitucionais, mas que não deixam de surgir, uma após a outra.


No caso do Brasil, cujo sistema de fomento à cultura mescla a participação pública com a privada, o problema se aprofunda com a chamada censura econômica, na qual potenciais patrocinadores das artes se omitem ou retiram patrocínio de obras geradoras de polêmicas por pressão dos seus clientes, que fazem boicotes aos bens e serviços das empresas que fomentam a expressão da arte que lhes é indesejável.


Portanto, no Brasil, a liberdade artística está mais bem protegida do Estado que da Sociedade, pois para aquele a Constituição tem considerável força e suficiência, mas para esta há a gritante necessidade de formação com valores de cidadania e respeito às diferenças.


Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP)

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