Foto: Sesc/Divulgação
O Estado do Ceará, com a Lei nº 13.351/2003 [1], foi um dos pioneiros na preservação e na proteção do patrimônio imaterial. Instituiu uma política estadual, operacionalizada pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE), que passou a reconhecer e fomentar o trabalho de pessoas identificadas pela comunidade como Mestres/Mestras da Cultura Tradicional Popular. Uma pessoa tradicionalista (Mestres/Mestras) é depositária da herança oral, promovendo o fluxo de saberes/fazeres, ao longo dos anos.
Revisada e ampliada, pela Lei nº 13.842/2006 [2], essa política cultural, que passou a ser conhecida como a Lei dos Tesouros Vivos da Cultura, avança ao direcionar o seu raio de ação para coletividades e grupos. A candidatura a Tesouros Vivos é realizada por chamada em edital e analisada por pareceristas. Se eleita, a pessoa recebe o diploma de Tesouro Vivo e é inscrita em livro específico, além de receber a titulação de Notório Saber.
A colaboração da comunidade é imprescindível nesse processo, que exige a efetiva participação popular na fiscalização, cobrança e execução para que tenha continuidade, pois o reconhecimento não é uma política assistencialista emanada do Estado; é uma ação de valorização que não prescinde do notório reconhecimento comunitário.
Depois que circularam documentos promulgados pela Unesco, a saber, a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e Tradicional [3], de 1989, e a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial [4], de 2003, ficou mais nítida a necessidade de debate público com repercussão em âmbito municipal, estadual, nacional e internacional.
Foram elaboradas, então, diretrizes para a criação de sistemas nacionais de Tesouros Humanos Vivos, que albergasse a diversidade. Assim, as políticas de patrimonialização de pessoas ou grupos da cultura popular e tradicional, de matrizes diversas, estão amparadas por leis de registro, na esteira de uma série de discussões sobre salvaguarda do patrimônio imaterial.
Desde o processo de invasão europeia ao Brasil, os agressores encetaram necropolíticas de silenciamento, invisibilidade e submissão aos povos originários e aos povos africanos. O escravismo criminoso explorou a mão de obra africana e suas tecnologias. Segue na esteira o capitalismo racista antinegro que minimiza os conhecimentos não euro-referenciados.
As lutas por direitos da população negra e dos povos originários estabeleceram, no sistema educacional brasileiro, leis que reconhecem o direito desses povos conhecerem a sua história. A Lei nº 10.639/2003 [5] e a Lei nº 11.645/2008 [6], tratam respectivamente do ensino da cultura e da história africana, afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras. É notória a relação desses povos com as suas ancestralidades; os mais velhos são responsáveis por promover o fluxo de saberes/fazeres/conhecimentos que envolvem as tradições das comunidades.
Reconhecer Tesouros Vivos é fomentar a formação com base no processo histórico de desenvolvimento dessas matrizes culturais, fortalecendo o antirracismo, opondo-se ao capitalismo criminoso. O modo de exploração e agressão, de base europeia, implantou um racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira, metamorfoseando-se, e está nos pequenos gestos que excluem, invisibilizam e constrangem o sujeito que não está na ordem do dominante. Mata!
A Lei nº 7.716/1989 [7], com interpretação ampliada, tipifica a conduta criminosa que atinge, além da população afro-brasileira e dos povos originários, grupos como a população LGBTQIAPN+.
O reconhecimento de Tesouros Vivos poderia ser acompanhado de uma política intersetorial que dialogasse, sobretudo, com a educação, tendo em vista que são vários saberes, fazeres inter-relacionados, holísticos, de alto grau de complexidade, muitas vezes códigos ininteligíveis aos leigos. Esses códigos são traduzidos para serem acessíveis ao público por meio de vivências em oficinas, rodas de diálogo, apresentações participativas entre outras dinâmicas, realizando uma educação patrimonial significativa para a compreensão de sociabilidade comunitária de base ancestral.
Os Tesouros Vivos, na figura de Mestres/Mestras da Cultura, têm a prerrogativa conferida pela experiência e pelo título de Notório Saber, que permite transitar no ambiente acadêmico e escolar. Além dos editais de fomento para manutenção de fluxo de saberes/fazeres, parcerias com secretarias municipais de educação poderiam ser estabelecidas, para que Tesouros Vivos pudessem atuar com outro olhar sobre o conhecimento com os códigos próprios da manifestação a que pertencem.
O individual é coletivo, o coletivo é individual. É uma relação afetiva, de retroalimentação, conectados por liames ancestrais, caminha com propósitos sociais que considera o outro pelo princípio da solidariedade, os seres humanos não são autossuficientes. As esferas de reconhecimento são três, a solidariedade é uma delas, necessária à cidadania, pois os distintos modos de vida são de interesse recíproco. Na esfera do amor, uns reconhecem nos outros as suas carências e percebem a alteridade de forma complementar e no direito, ao olhar para o outro, identifica-se um sujeito de direitos de ordem comunitária.
O reconhecimento colabora para identificar marcadores de pertencimento em comunidades que tiveram os seus saberes, fazeres e modos de ser no mundo, minimizados como algo inferior ao padrão eurocêntrico. Para ser Tesouro Vivo é intrínseco ser antirracista, anti-homofóbico, antimachista, antimisogênico, anticapacitista, pois não se pode reconhecer um saber/fazer cultural que agride o outro ser humano em sua diversidade, em sua alteridade. A dignidade das pessoas é o fundamento de uma política de reconhecimento da cultura, que tem como objetivo maior preservar a vida.
* José Olímpio Ferreira Neto - Capoeirista. Advogado. Professor. Mestre em Ensino e Formação Docente. Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR). Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: jolimpiofneto@gmail.com
Notas e referências
[3]https://www.icomos.pt/images/pdfs/2021/30%20Recomenda%C3%A7%C3%A3o%20cultura%20popular%20-%20UNESCO%201989.pdf
[4]http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ConvencaoSalvaguarda.pdf
[5]https://www.mpma.mp.br/arquivos/CAOPDH/Leis_10.639_2003__inclus%C3%A3o_no_curr%C3%ADculo_oficial_da_Hist%C3%B3ria_e_Cultura_Afrobrasileira.pdf
[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm
Referencial consultado:
ALMEIDA, S. L. de. Racismo Estrutural. Feminismos Plurais. São Paulo: Pólen, 2019.
BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
CEARÁ. Lei nº 13.351, de 22 de agosto de 2003. Institui, no âmbito da Administração Pública Estadual, o Registro dos Mestres da Cultura Tradicional Popular do Estado do Ceará (RMCTP-CE) e dá outras providências.
CEARÁ. Lei nº 13.842, de 27 de novembro de 2006. Institui o Registro dos "Tesouros Vivos da Cultura" no Estado do Ceará e dá outras providências.
CUNHA FILHO, F. H.; FERREIRA NETO, J. O. Tesouros Humanos Vivos: Os Mestres da Cultura Cearense. VIII ENECULT/UFBA: Salvador-BA, 2012.
CUNHA JUNIOR, H. A. História dos afrodescendentes: disciplina do curso de pedagogia da Universidade Federal do Ceará. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), Maringá, v. 21, n. 232, 2022.
HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África – Volume I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.
HONNETH, A. Luta por reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2009.
MBEMBE, A. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. N-1Edições: 2003.
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