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Primeiro vieram os totens de autoatendimento 


Imagem: Pixabay


Mas quem diabos iria se importar com isso senão recepcionistas e atendentes de lojas e aeroportos que viram o quadro de trabalhadores ser reduzido de um dia pro outro? Até porque, na verdade, primeiro, mesmo, vieram outras tantas máquinas antes dessas pra substituir o trabalho humano, tudo em nome do progresso ou, tempos depois, da melhoraria da experiência do usuário, outras formas de não falar que as coisas acontecem mesmo é em prol do capital. E quando os totens de autoatendimento finalmente chegaram, quem de fato sentiu o impacto da mudança foi uma parcela de consumidores com claras barreiras digitais, até porque o mercado de trabalho que se danasse, àquela altura já saturado de precarizações.


Agora vieram as inteligências artificiais generativas fazer tremer as bases também de quem nunca havia sentido medo de ser substituído por máquinas. Textos, vozes, imagens e até corpos, criados a partir de prompts de comando – textos descritivos para a execução de uma tarefa por inteligência artificial –, vêm transformando todo o setor de produção cultural e de entretenimento antes mesmo do surgimento de regulamentações específicas às inteligências artificiais.


Em poucos meses as preocupações passaram a uma complexidade alarmante. As questões relacionadas a direitos autorais e propriedade intelectual foram somadas às situações que envolvem direito de imagem e utilização da identidade humana como matéria-prima, o que pode ser aplicável às produções audiovisuais em geral.


As grandes produtoras de Hollywood tentaram estabelecer vínculos contratuais de escaneamento de atores para criar produções audiovisuais sem a necessidade de atuação dos artistas. Empresas de games estão sintetizando vozes para personagens com o intuito de não mais precisarem contratar dubladores. Em 2021, a empresa britânica Flawless criou um software capaz de sincronizar os movimentos labiais de atores com o idioma de dublagem. Esse recurso, em conjunto à extração da voz original de atores e sintetização para reprodução em outro idioma já é suficiente para dispensar dubladores, enquanto a digitalização da imagem e sua respectiva manipulação por deepfake poderia extinguir o ofício da atuação para cinema e TV.


Modelos criadas por IA já faturam milhares de dólares por mês com a produção de conteúdos adultos, e ainda recebem propostas de casamento. Aplicativos que utilizam inteligências artificiais generativas criam desenhos personalizados para tatuagens, e entre os artistas do setor já é uma preocupação o eventual surgimento de máquinas capazes de substituir o trabalho manual. Paul McCartney acabou de gravar uma música com John Lennon graças ao auxílio da inteligência artificial.


Talvez seja a primeira vez na história em que trabalhadores ligados à cultura e a trabalhos intelectuais veem seus ofícios, em essência, serem desempenhados por máquinas, e sem facilidade de identificação do método. Se na década de 1930 Walter Benjamin já falava da perda da unidade, da singularidade e da autenticidade da obra de arte em decorrência da reprodutibilidade técnica, menos de cem anos depois é questionável até em que consiste o que estamos experienciando.


Ainda que existam barreiras e restrições quanto ao tipo de produção que desejamos consumir, o refinamento das tecnologias vai fazer com que seja improvável diferenciar sua forma de criação, e pode ser que essa problemática seja enfiada goela abaixo pela indústria cultural, especialista em produtos aceitos de forma incondicional. Em algum momento vieram os totens de autoatendimento. Mas quem se importou? Quando finalmente vieram as inteligências artificiais produtoras culturais, quem restou pra se importar?


*Cibele Alexandre Uchoa, Escritora. Pesquisadora. Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Sócia-fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult

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