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Pirataria e a eterna luta pelos direitos autorais


Créditos: MorningbirdPhoto/Pixabay


La propriété intellectuelle, c’est le vol!” foi o título do artigo provocativo do economista Daniel Cohen (1), publicado no jornal Le Monde, em 2001, que, almejando a quebra de paradigmas da propriedade intelectual, evocou os princípios filosóficos do pai do anarquismo francês Pierre-Joseph Proudhon que defendia que propriedade é um roubo.


A ideia de que os direitos de propriedade intelectual constituem um “privilégio”, afrontam o direito do público de acesso à informação e impedem ainda a “socialização do conhecimento” foi objeto de muita reflexão nos debates sobre direitos autorais em meados do século XIX na França, a partir de diversos intelectuais, mas principalmente com Proudhon. Na obra Les Majorats littéraires, ele apresenta uma teoria contra a utilização do direito de propriedade pelos autores sobre as suas obras. Anos após, tal debate ressurge nas patentes de remédios contra a AIDS e, principalmente, com o advento de novas tecnologias - o digital e a Internet -, por meio de vários casos emblemáticos, desde a distribuição maciça de músicas pela Napster, mobilizando a indústria fonográfica à criação das licenças creative commons e inúmeros outros.


Exatamente cinco dias após o lançamento da biografia do ex-presidente Lula, tal debate veio mais uma vez à tona com a denúncia do autor, Fernando Morais, nas suas redes sociais: “Estão pirateando meu livro sobre o Lula. Ou seja, estão me roubando. (...) Vivo de direitos autorais. Vou atrás e botar essa canalha no banco dos réus”. A difusão desautorizada da obra foi realizada por um advogado que, apesar de ter se desculpado publicamente com o autor, justificou tal ato em razão da “socialização do conhecimento”.


Autores então se manifestaram contra a pirataria, lembrando serem privados dos correspondentes direitos autorais, remuneração de seu trabalho, da qual dependem para pagar suas contas. Outros autores disseram relevar a pirataria, lembrando a crise que assola o país, o alto custo do livro, o minguante investimento cultural e as extensas bibliografias acadêmicas (um caso à parte).


O acesso a livros, ao conhecimento, à educação, é um direito fundamental que deveria ser absolutamente respeitado em todos os graus pela nossa sociedade. A crítica proudhoniana à propriedade nos parece, num primeiro momento, totalmente fundada e legítima. Contudo, a viabilização desse acesso não pode ameaçar a própria existência e a difusão da produção autoral.


A visão romantizada do processo criativo e editorial, no sentido que escrever e produzir um livro é um ato de amor e não um ofício que envolve diversos outros trabalhadores, parece ainda preponderar. Para entender esse processo, deve ser esclarecido que os autores são o primeiro elo da corrente necessária para que um livro chegue às mãos dos leitores. Depois deles, há eventualmente tradutores, editores, preparadores, revisores, designers, diagramadores, equipes comerciais, gráficas, logísticas – isto para que o livro possa estar nas livrarias.


O trabalho de todas essas pessoas deve ser remunerado e é, pois a editora faz esses pagamentos antes mesmo que os livros sejam lançados, para depois ser ressarcida e remunerada ao longo dos vários meses, às vezes anos seguintes, com o resultado da venda dos livros. O investimento financeiro da editora, no caso da biografia do Lula, provavelmente iniciou no pagamento das passagens de avião ao autor para coleta de material, para realizar entrevistas e outros. A cópia pirata não entra nesta conta!


As editoras também estão sentindo o impacto da crise econômica, da grande desvalorização da moeda nacional que encareceu proporcionalmente o custo dos adiantamentos pagos a autores estrangeiros, além do preço do papel, insumo essencial à produção. Isso tudo dificulta ou mesmo inviabiliza o acesso do leitor ao livro, seja pelo aumento do preço final ou, então, pela própria não realização/produção do livro.


No entanto, nota-se que a discussão tem partido do pressuposto de que a compra de um livro novo é indispensável à leitura desse livro. Há elementos importantes que estão esquecidos nessa discussão: as bibliotecas e os programas de distribuição de livros. Eles garantem o acesso ao livro, mas dependem de políticas públicas contínuas e bem estruturadas. Políticas que favorecem o leitor, os produtores dos livros, toda a sociedade.


No Brasil não há previsão legal de qualquer excepcionalidade favorável às bibliotecas, particularmente na oferta de serviços como reprografia de obras em formato digital ou empréstimo de e-books. Na Europa, além de Diretiva expressa nesse sentido (2), existe, especificamente, o direito ao empréstimo (3) que, por meio de um sistema de gestão coletiva, os Estados versam uma remuneração aos autores/outros titulares pelo uso público de suas obras nas bibliotecas.


Porém, além da barreira financeira entre o leitor e os livros, há outras mais angustiantes para editores e qualquer outro agente da produção cultural. São as barreiras que se impõem entre milhões de brasileiros e os livros, independentemente de sua venda com enorme desconto em feiras universitárias, sua disponibilidade em bibliotecas ou sua distribuição em escolas.


Pois se há os requisitos e fazeres para que um livro esteja na livraria, há muitos outros para que o leitor esteja na livraria ou biblioteca, e ainda outros para que a livraria esteja na cidade. Essas barreiras podem ser consideradas violações a direitos fundamentais, e não se resolvem automaticamente com a melhoria da situação econômica ou com a redução do custo do livro, com a multiplicação e a atualização de bibliotecas nem com a distribuição de livros. Essas permanecem até que haja uma mudança social profunda, a implementação de políticas culturais e educacionais próprias, a valorização da cultura e do conhecimento. Estamos distantes disso.


*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e advogada do Studio MATTES


Silvia Naschenveng é formada pela PUC/SP e mestre pela London School of Economics and Political Science, é fundadora e editora da Mundaréu



(2) Diretiva 2001/29/CE do Parlamento europeu e do Conselho de 22 de maio de 2001.


(3) Diretiva 2006/115/E do Parlamento europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2006 – relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor em matéria de propriedade intelectual.






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