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A realidade distópica de Bezos e a venda do patrimônio cultural veneziano 

Anita Mattes, Doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbone, professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) 

 



A cidade de Veneza, na Itália, atualmente, é considerada por muitos estudiosos um dos casos mais emblemáticos de overturismo. Isto é, o seu centro histórico, vielas, museus e restaurantes vivem, cotidianamente, com a superlotação e congestionamento causado por uma invasão de turistas [1], trazendo graves impactos para a infraestrutura, o meio ambiente e, principalmente, para a qualidade de vida dos moradores locais, em virtude do aumento dos custos gerais, desde moradia a alimentos, assim como a grande dificuldade na realização das tarefas diárias, como uso de transporte público, comércio, escola e hospitais. 


Tanto é assim que, nos últimos anos, a Prefeitura de Veneza vem buscando a adoção de diversas medidas para a gestão do seu fluxo turístico. Entre a mais atual e polêmica está a exigência do pagamento de uma taxa para o acesso à cidade. O objetivo é mitigar o fenômeno, mas a situação está longe de achar uma solução efetiva, pois o problema é complexo e exige propostas mais amplas, devendo ser administrada por interesses mais sociais e menos subordinados a uma simples questão econômica.  


Prova disso é que, apesar de toda essa “batalha”, quando as instituições se veem diante do poder da elite econômica global, acabam cedendo, transformando regras e espaços públicos em privilégios privados, legitimando eventos suntuosos mesmo em locais ameaçados e protegidos como patrimônio cultural da humanidade, e mostrando que, no fim, a proteção do bem coletivo resta por sucumbir diante do dinheiro e do prestígio.  

 

Exemplo disso foi o evento realizado em Veneza no último final de semana de junho, quando o tecno-oligarca americano, proprietário da multinacional Amazon, – Jeff Bezos – literalmente comprou Veneza! 


Trazendo uma parade de star hollywoodianos, grande parte da elite transnacional e inúmeros paparazzi, contratou um exército de seguranças que bloqueou ruas e deixou a cidade totalmente fechada até para residentes: acesso proibido, transporte desviado e espaços públicos totalmente interditados.  

 

A Basílica de San Giorgio Maggiore, um lugar sagrado, construída em 1560, pertencente a uma cidade patrimônio Unesco da humanidade, foi transformada em uma catedral totalmente privada e de acesso restrito aos amigos do oligarca. 

 

Embora tenha adquirido Veneza e suas catedrais históricas, Bezos ainda assim protagonizou o que muitos chamam de “o casamento do século”, um evento romântico e glamouroso realizado em um cenário italiano histórico. Contudo, se observarmos o acontecimento detalhadamente, ele retrata uma realidade totalmente distópica.  

 

A cerimônia de “conto de fadas” se desenrola em uma das cidades mais ameaçadas pelo turismo predatório e pelas mudanças climáticas aceleradas por atividades de empresas como a dele. Nos últimos anos, os canais de Veneza vivem transbordados de água resultante do aumento do nível do mar, enquanto ondas de visitantes obstruem suas vielas e expulsam moradores que lutam contra o aluguel especulativo.  

 

O que podemos constatar é que o casamento de Bezos reflete claramente uma performance de poder, uma demonstração pública da privatização dos bens comuns e de como riqueza extrema pode se blindar das consequências que ela mesma ajuda a gerar.  

 

É uma clara distopia que está justamente no contraste entre aparência e realidade. Enquanto a maior parte do mundo está enfrentando o aquecimento global e degradação social, ambiental, cultural e, no caso em questão, o provável desaparecimento de uma cidade patrimônio Unesco da humanidade, há aqueles para quem essas crises são apenas cenários exóticos que podem ser comprados para realização de megafestas particulares.  

 

Infelizmente, algumas regras, se não todas, são somente para quem não pode pagar. 


Notas: 


[1] "Overtourism’? – Understanding and Managing Urban Tourism Growth beyond Perceptions in World Tourism Organization (UNWTO), Setembro de 2018, https://www.e-unwto.org/doi/book/10.18111/9789284419999 e GOODWIN, Harold. Overturism, 2017, in https://haroldgoodwin.info/wp-content/uploads/2020/08/rtpwp4overtourism012017.pdf

 

 

 

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