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A dialética do patrimônio cultural alimentar: Controle e resistência à mesa



Anita Mattes, Doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbone, professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)


A comida é, antes de tudo, uma necessidade biológica. Mas quando olhamos pela lente da cultura — da pizza à feijoada, ela carrega símbolos, tradições, representa identidade, modos de vida, territórios e memórias. 


Na culinária vemos a transformação da comida em práticas cotidianas fundamentadas “em conhecimentos, rituais e gestos que surgem de uma mistura cultural e social de hábitos culinários” [1]. Essa mistura de tradição comum com um modelo de identidade sociocultural, valorizando a diversidade biocultural dos territórios, fez com que, em março de 2023, o Ministério da Cultura juntamente com o Ministério da Agricultura, Soberania Alimentar e Florestas da Itália lançassem a culinária italiana para a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco. 


Tal candidatura — apresentada oficialmente como “La cucina italiana tra sostenibilità e diversità bioculturale” [2]— será examinada pelo Comitê Intergovernamental da Unesco em sua 20ª sessão em dezembro do presente ano, na Índia, e, se aprovada, a Itália se somará à França, Japão, México e outros países que já tiveram suas tradições culinárias reconhecidas pela Unesco. 


A Itália já possui outras tradições pertencentes ao patrimônio alimentar igualmente reconhecidas em lista semelhante: a cozinha napolitana, a dieta mediterrânea e a arte do pizzaiolo napolitano, mas a candidatura atual tem escopo mais amplo. Ela abrange toda a cozinha italiana como um complexo sociocultural nacional, visando reconhecer riqueza de técnicas, ingredientes, rituais e valores que compõem o universo alimentar Italiano, criando um elo entre família, comunidade, escola e sociedade civil [3].


O dossiê apresentado à Unesco, expressa que a culinária italiana representa “um sistema relacional estruturado e unificador que transforma o tempo compartilhado à mesa em casa, nos refeitórios comunitários ou escolares, durante festas ou cerimônias, em uma ferramenta para expressar sentimentos, dialogar ou compartilhar sugestões” [4]. Assim, para o professor Pier Luigi Petrillo, diretor da cátedra Unesco da Universidade Unitelma Sapienza e professor de Patrimônio Cultural, se a culinária italiana se tornasse patrimônio mundial, seria colocada no mesmo nível do David de Michelangelo ou do Coliseu, porque seu valor cultural e identitário seria reconhecido institucionalmente e mundialmente [5]


Observa-se que, no campo jurídico, temos cada vez mais o reconhecimento e a consolidação do conceito de direitos culturais como parte essencial dos direitos fundamentais, tanto pelos órgãos institucionais nacionais como internacionais. A cultura é, assim, mais do que arte ou patrimônio tangível; ela abrange também as práticas cotidianas, os saberes, os modos de vida e, especialmente, as práticas alimentares tradicionais. 


Contudo, é essencial compreender que as práticas alimentares, como a cozinha italiana, são vivas. Elas nascem de uma construção histórico-social, do encontro (e do conflito) de classes sociais, religiosas, migratórias, saberes camponeses, e até mesmo de formas de resistências a imposições ditatoriais. Exemplos eloquentes são os episódios da “dieta fascista” e da “batalha pelo grão” na história da culinária italiana. 


Por volta do final de 1935, o regime fascista viu-se isolado comercialmente e o suprimento de alimentos dos italianos começou a ficar escasso, principalmente do pão e da pasta pela falta de trigo. Diante dessa carência, Mussolini passou a defender uma estratégia política para alcançar a autossuficiência alimentar a partir de não somente aumento da produção agrícola, mas da influência direta nos hábitos alimentares da população. 


Para isso, a propaganda fascista declarou guerra à própria identidade culinária. A famosa pasta italiana virou alvo de indignação e desprezo pelo governo, sendo incentivado o consumo de arroz e polenta que eram mais baratos e de produção nacional. “As mesas das famílias italianas tornaram-se trincheiras do nacionalismo econômico”, escreve Laforgia [6]


Produtos importados passaram a ser evitados ou banidos, enquanto se exaltavam alimentos considerados “patrióticos”. Na “dieta fascista”, comer pouco era uma virtude, buscar produtos estrangeiros era traição. A carne vermelha, por exemplo, foi parcialmente substituída por frango e coelho e a pasta italiana era algo a ser destruída – distruggiamo la pasta, bradava um dos maiores filósofos da época, Filippo Tommaso Marinetti [7].  

A alimentação foi, assim, na Itália durante o regime fascista, usada como instrumento de propaganda e controle do Estado. Tanto é assim, que no dia da morte e queda de Mussolini, 25 de julho de 1943, uma família partigiana e antifascista da Região da Emília-Romagna, os irmãos Cervi, como um ato político de resistência ao fascismo, distribuiu à população mais de 380 quilos de pastasciutta [8] (um prato simples de massa branca com manteiga e queijo). 


Se por um lado, o ato de consumir pasta durante os anos de guerra na Itália transformou-se em um gesto carregado de significado político — funcionando como símbolo de resistência cotidiana —, por outro lado, alguns dos hábitos alimentares desenvolvidos ou reforçados nesse contexto bélico continuam hoje profundamente enraizados até hoje na cultura culinária italiana [9]


Assim, o passado histórico fascista da alimentação em contraste com a atual da candidatura da culinária italiana à Unesco, nos convida a refletir sobre a dialética do patrimônio cultural alimentar tradicional dos povos: onde a comida transcende a mera nutrição e assume uma dimensão simbólica e social profunda, sendo, inclusive, usada como instrumento por regimes políticos. 



Notas:


[1]Dossiê da candidatura italiana, n° 02093, para a inscrição em 2025 na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco da “culinária italiana entre a sustentabilidade e a diversidade biocultural, ver www.ich.unesco.org.


[2] “A cozinha italiana entre a sustentabilidade e diversidade biocultural” (trad. livre).


[3]Dossiê da candidatura italiana.


[4]Dossiê da candidatura italiana.



[6]LAFORGIA, Enzo R. Quando il fascismo dettava la dieta. La propaganda a tavola, tra sovranità alimentare e autarchia, Ed. People, 2025.


[7]SIGNORE, GianCarlo. Storia della abitudini alimentari. Dalla preistoria al fast food. Ed. Tecniche nuove, 2010.



[9]MONTANATI, M. Il mondo in cucina: storia, identità, scambi, Ed. Laterza, 2002.

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