A Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de patrimônio cultural, incluindo bens tangíveis e intangíveis, tais como monumentos, documentos, tradições, expressões culturais e artísticas. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, é responsável pela proteção e a promoção do patrimônio cultural brasileiro [1].
Nessa perspectiva, a diversidade cultural foi explicitada, incluindo grupos historicamente excluídos das políticas públicas voltadas ao âmbito cultural, como comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, rurais e, também, a comunidade LGBTQIAPN+, detentora de “patrimônio não-consagrado”, a exemplo da Parada do Orgulho, um evento mundialmente celebrado, que se tornou um marco para a memória dessa comunidade no Brasil.
Essa celebração tem a sua gênese no evento ocorrido em 28 de junho de 1969, quando a comunidade gay organizou um movimento de resistência, no bar Stonewall, em Nova York, para se manifestar contra a ação agressiva de policiais. A primeira marcha do orgulho aconteceu na cidade de Nova York, em 1970, e outras foram surgindo, com o mesmo propósito, em outras localidades. Então, o dia 28 de junho foi reconhecido como Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, em alusão a esse movimento de resistência [2].
No Brasil, a primeira Parada do Orgulho aconteceu em 1997, em São Paulo. Sendo um dos maiores eventos da capital paulista, é reconhecido como um marco para a memória da Comunidade LGBTQIAPN+ brasileira, além de ser uma das maiores celebrações em um cenário global. A Parada do Orgulho de São Paulo tem impactos diretos na economia da cidade e na sua movimentação turística. Dados referentes à 26ª Parada do Orgulho, em 2022, atestaram que mais de 40% dos turistas vieram à cidade com o objetivo de participar da marcha, isso é, 80% de ocupação em hotéis [3].
Em 2017, ocorreu o ingresso do Projeto de Lei nº 399/2017, na Câmara de Vereadores de São Paulo, que apresentou o reconhecimento da Parada do Orgulho de São Paulo como Patrimônio Cultural Imaterial do Município. No entanto, o parecer final foi negativo. O documento visava reconhecer a Parada do Orgulho como Patrimônio Cultural Imaterial, porém não apresentava o processo de registro da Parada.
O processo de registro de um Bem Cultural consiste em um ato administrativo, aplicado aos Bens de Natureza Imaterial, com base legal no Decreto nº 3.551/2000, além da Resolução 001/06, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, que determina o procedimento para o Registro. O uso de Projeto de Lei para esse reconhecimento é inadequado, pois o que se vislumbra é o oportunismo político. É preciso estimular a participação da comunidade para o registro do evento como uma celebração.
Ainda que esse caminho não seja o adequado, o parecer negativo fortaleceu um discurso deslegitimador de ações de reconhecimento de patrimônios oriundos da população LGBTQIAPN+. A seletividade, que ainda permeia alguns grupos da sociedade brasileira, evoca a incompatibilidade do movimento com os valores a serem preservados e promovidos pelas ações de patrimonialização [4].
Assim, é preciso se contrapor e destacar a contribuição da comunidade para a formação da identidade brasileira por meio de suas personagens históricas, como Madame Satã, que carregam outros marcadores de opressão, preta, travesti e em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que lutou contra o racismo criminoso. Ou, ainda, por meio da língua pajubá que se incorpora ao vocabulário do cotidiano trazendo contribuições de línguas de origem afro-brasileiras, como iorubá, presentes em religiões de matriz africana. Assim, o reconhecimento da comunidade LGBTQIAPN+, por meio de seus bens culturais, é uma forma de reparação aos povos minorizados em sua pluralidade.
A aproximação do Estado com a comunidade ocorreu pelo setor da Saúde, no final dos anos 1990, numa perspectiva higienista. Nos anos 2000, o Ministério da Cultura criou um Grupo de Trabalho para promoção da cidadania dessa comunidade e apoio a então “Parada Gay’’. Em ambos os casos a visibilidade do evento possibilitou a aproximação do Poder Público [5]. No entanto, pelo viés cultural, o evento afirma o direito à expressão de orientação sexual, identidade e expressão de gênero, exercício da cidadania e uma cultura de paz, preservando a dignidade da pessoa humana.
Em síntese, essas marchas, chamadas de Parada da Diversidade, são em alusão ao fluxo de saberes e formas de expressão que permeiam a comunidade, representam um momento de celebração, que possuem um valor histórico, pois remontam às primeiras manifestações da comunidade LGBTQIAPN+ pelos seus direitos. Assim, é possível afirmar a possibilidade do registro da Parada da Diversidade nos Livros das Celebrações, por meio do processo previsto no Decreto nº 3.551/2000. Como a parada ocorre em várias cidades do Brasil, recomenda-se, ainda, uma ação local para o reconhecimento dessa manifestação a nível estadual e municipal, com base em estruturas normativas que regulam o registro de bens imateriais.
Texto elaborado para a disciplina de Direitos Culturais e Desenvolvimento Humano, no curso de pós-graduação (lato sensu) em Gestão Cultural, da Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR.
Notas
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 28 abr. 2023.
[2] FERREIRA NETO, José Olímpio; VIDAL, Mariana Portela; MORAIS, Amanda Ingrid Cavalcante. A Parada do Orgulho LGBT como um direito cultural. 2022. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/a-parada-do-orgulho-lgbt-como-um-direito-cultural. Acesso em 28 abr. 2023.
[3] SECRETARIA ESPECIAL DE COMUNICAÇÃO DA PREFEITURA DA CIDADE DE SÃO PAULO. Parada do Orgulho LGBT se consolida como a maior do mundo e movimenta a economia da capital. In: Cidade de São Paulo. São Paulo, 21/06/2022. Disponível em: https://www.capital.sp.gov.br/noticia/parada-do-orgulho-lgbt-se-consolida-como-a-maior-do-mundo-e-movimenta-a-economia-da-capital#:~:text=A%2026%C2%AA%20 Parada%20do%20 Orgulho,Paulo%2C%20 entidade%20 organizadora%20do%20 evento. Acesso em: 28 abr. 2023.
[4] BRITTO, Clovis Carvalho. E MACHADO, Rafael dos Santos. Informação e Patrimônio Cultural LGBT: ass mobilizações em torno da patrimonialização da parada do orgulho LGBT de São Paulo. Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, Florianópolis, v. 25, p. 01-21, 2020.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ/MinC-IPHAN, 2005.
[5] MUNIZ JR., José de Souza; BARBALHO, Alexandre Almeida. Entre a Diversidade e o Antagonismo: Práticas articulatórias da discursividade LGBT no Ministério da Cultura. Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS) - Vol. 35 n° 102. 2020.
*Giovanni Amaral Cosenza, Coordenador de Cultura do Grupo Dignidade e Coordenador Titular de Cultura da Aliança Nacional LGBTI+. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, bacharel em direito pela mesma universidade. Tecnólogo em Produção Cênica pela Universidade Federal do Paraná, com MBA em Dança, com ênfase em Produção e Gestão Cultural, pela Faculdade Inspirar. Cursando Especialização em Gestão Cultural pela UNESPAR e realizando Residência Técnica no Museu Paranaense. E-mail: giovannicosenza1996@gmail.com
Milena Carolina Ribeiro, Doutoranda do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, mestre em história e bacharela em História Memória e Imagem pela mesma instituição. Cursando Especialização em Gestão Cultural pela UNESPAR e Residente Técnica no Secretaria da Cultura do Paraná, alocada no Museu de Arte Contemporânea do Paraná. E-mail: micarolina.r@gmail.com
José Olímpio Ferreira Neto, Capoeirista. Advogado. Professor. Mestre em Ensino e Formação Docente. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR). Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Membro da Comissão de Direitos Culturais da OAB-CE E-mail: jolimpiofneto@gmail.com
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