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Capoeira nas escolas, não em arenas 



 

O Mestre de Capoeira, cujo ofício é reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil, canta: “...minha educação não foi a escola que me deu, quem me deu foi a Capoeira…” [1]. A letra da cantiga é uma crítica que traduz a realidade, pois além de denunciar o acesso precário à educação formal, também chama atenção para uma educação que não dialoga com a cultura do seu povo. Sabe-se que a educação brasileira é de base eurocêntrica, portanto, traz a visão de mundo do explorador, aquele que raptou, estuprou e matou e ainda se reveste de “homem de bem”. Apesar de reproduzir o modo de vida capitalista, a escola pode ser, ao mesmo tempo, um lugar de transformação social. Para isso, é preciso circular outras formas de ver o mundo, como os saberes das manifestações culturais afro-diaspóricas, a exemplo da Capoeira, Maracatu, Jongo, Frevo e Maculelê. 


A Capoeira se inseriu no universo escolar brasileiro depois de um processo de embranquecimento que não deu certo. Entre aproximações e distanciamentos desses espaços, frutos de negociações e tensões, com permanência pacífica ou conflituosa, a Capoeira seguiu se firmando como uma cultura que colabora para a formação humana. Pode estar na escola, como uma atividade optativa e/ou ser da escola, inserida na grade curricular ou como conteúdo da ementa obrigatória. 

 

A presença dessa manifestação cultural afro-brasileira na escola pode colaborar para a efetivação da Lei nº 10.639/03 [2], aproximando os alunos e alunas da história e cultura afro-brasileira. Como é cantado na Roda de Capoeira, Patrimônio Cultural do Brasil e da Humanidade, à liberdade se faz “...com a verdade da favela, não com a mentira da escola…” [3], que foi contada por anos nas salas de aula, destacando os “heróis” brancos e silenciando os guerreiros e guerreiras negras, tal como “...Zumbi, nosso Rei Negro…” [4]. 

 

Apesar de haver aproximação entre a Capoeira e a Educação, ainda não há uma vinculação legal que assegure, explicitamente, a sua presença na escola. Ao contrário, Salvador, onde segundo o Observatório da Economia Criativa apenas 11% dos grupos de Capoeira possuem sede própria [5], a possibilidade de fomentar a presença da Capoeira na escola foi vetada e, paradoxalmente, foi dado apoio a um projeto para a criação de uma arena da Capoeira. 

 

Distanciar a Capoeira da concepção das Rodas de Capoeira e aproximá-la do ideário de arenas, como na Idade Antiga, quando existiam arenas de gladiadores, revela uma noção eurocêntrica que não dialoga com a visão de mundo circular dos povos africanos no Brasil. A Capoeira, como expressão da democracia, afirma-se propriamente nas dimensões educativa e artística e não de competição esportiva, aproximada da concepção embranquecida e higienista. O aspecto esportivo indicado no Estatuto da Igualdade Racial [6] não pode ser base para o seu aprisionamento nas mãos de cartolas, agentes ou quaisquer outros congêneres, que venham a controlar e explorar a Capoeira no show business da sociedade das competições. 

 

Muito se discute como o profissional da Capoeira pode adentrar à escola. Há meios possíveis como um Mestre da Cultura/Tesouro Vivo/Patrimônio Vivo [7], por exemplo, por meio de política intersetorial, na qual cultura e educação estão em diálogo. Além disso, há profissionais com licenciaturas, em diversas áreas, que poderiam atuar nas escolas, por meio do conteúdo curricular obrigatório. Há perfis diversos que estão habilitados a promover o fluxo dos saberes atinentes à Capoeira nas escolas. Para além de reconhecimentos estatais, formalizados e burocratizados, há o reconhecimento da comunidade, com mestres e mestras de notório conhecimento. 

 

Na França, há Mestres de Capoeira de Fortaleza-CE, como Juruna, Cibriba, Zangado e Pitomba, que vivem no país ministrando aulas em seus próprios espaços ou em escolas formais. Em escolas particulares, aulas são oferecidas para turmas diferentes a cada bimestre, integradas às atividades obrigatórias. O Mestre Tonho Matéria, de Salvador-BA, que também é destacado cantor da Axé Music, e o capoeirista Ailton Carmo, Mestre Besouro de Lençóis-BA, ator protagonista no filme longa metragem Besouro, têm experiências internacionais de inclusão e valorização da Capoeira. Puma Camillê, de São Paulo, já levou sua performance que alia o Vogue e Capoeira, como uma estratégia de formação e luta LGBT+, para vários países. Mestre João Grande, um Griot baiano foi reconhecido por universidades norte-americanas. Esses são apenas alguns exemplos de capoeiristas de todo o Brasil que transitam por vários continentes. Nas palavras do Mestre Juruna, que vive em Marselha há 30 anos, é “...o capoeirista integrando o mundo por meio da cultura afro-brasileira” [8]. 

A Capoeira na Escola, como atividade integrante da grade curricular obrigatória, no Brasil, já deveria ser uma realidade nacional. “Os Mestres de Capoeira tornaram-se muito influentes na divulgação da cultura brasileira no exterior. No entanto, na educação pública brasileira ainda não percebemos realmente as possibilidades oferecidas pela Capoeira em nível educacional” [9]. A presença do Mestre de Capoeira poderia oferecer a cada turma a vivência na Roda de Capoeira, na qual estão presentes os valores civilizatórios afro-brasileiros10 (oralidade, corporeidade, ancestralidade, ludicidade, identidade, comunidade, axé, memória, circularidade, religiosidade) que colaboram na formação humana, efetivando assim direitos culturais. 

 

José Olímpio Ferreira Neto, Capoeirista. Advogado. Professor. Mestre em Ensino e Formação Docente. ). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR) Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Vice-presidente da Comissão de Direitos Culturais da OAB-CE E-mail: jolimpiofneto@gmail.com 

 

Alexandre Almeida Aguiar , Advogado. Especialista em Direito Previdenciário. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR). Presidente da Comissão Especial de Cultura e Entretenimento da OAB/BA. E-mail: alexandreaguiaradvocacia@gmail.com 

 

Notas 

[1] Trecho da cantiga Educação do Capoeira, do Mestre Mão Branca, 1995, cantada nas Rodas de Capoeira. 

[2] BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 8 dez. 2023. 

[3] Trecho da cantiga Dona Isabel, do Mestre Tony Vargas cantada nas Rodas de Capoeira. 

 

[4] Idem. 

 

[5] Observatório da Economia Criativa da Bahia - OBEC/BA, Apenas 11% dos grupos de capoeira de Salvador tem espaços próprios, mostra pesquisa. Disponível em: <https://www.nonada.com.br/2023/03/apenas-11-dos-grupos-de-capoeira-em-salvador-tem-espacos-proprios-mostra-pesquisa>. Acesso em 14 de dez. 2023. 

 

[6] BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 8 dez. 2023. 

 

[7] Políticas Culturais de Estados para a valorização dos Mestres e Mestras da Cultura, grupos e coletivos, inspirada em documentos internacionais da UNESCO. 

 

[8] Imersões, vivências e conversas dos autores nas comunidades de Capoeira. 

 

[9] SODRÉ, M. Maître Bimba: Le capoeiriste au corps magique. T.J. Sanz Éditeur: Bruxelles, 2007.  

 

[10] TRINDADE, A. Valores civilizatórios afro-brasileiros na educação infantil. 2005. 

 

 

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