Ruínas do Anfiteatro Romano da Cidade de Lion – França - Foto de autoria do articulista
No biênio 2022-2023, motivado por dois movimentos contraditórios da chamada comunidade cultural, que de um lado clama muito por democracia, mas por outro convive tranquilamente com normas monocráticas para assuntos de interesse geral (como os decretos e portarias relativos a fomentos e a patrimônio cultural), o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza se dedicou a uma pesquisa homônima ao título deste artigo, buscando saber quão democráticos são os processos legislativos, as normas deles decorrentes e a efetiva aplicação de tal direito.
Reavivar a lembrança da mencionada pesquisa é muito importante, pois atualmente vivencia-se o processo das Conferências de Cultura, nos âmbitos municipais, estaduais e temáticos, como etapas de base para a 4ª Conferência Nacional de Cultura que, não por coincidência, será pautada pelo discutível tema “Democracia e Direito à Cultura”, conforme já tive a oportunidade de analisar no artigo “Afinal, temos ou não direito à cultura?” [1].
O processo legislativo pode ser parlamentar (quando feito no âmbito de casas legislativas) ou extraparlamentar. No parlamento, que formalmente já é um ambiente de representação democrática, a ampliação dessa condição geralmente é tentada através das audiências públicas, às quais, todavia, costumam comparecer apenas “fazedores de cultura” (expressão com forte apelo de excludência de quem não está no espectro mais direto do raio de ação dos órgãos que tratam da matéria), com preponderância da presença dos que têm algum tipo de vinculação institucional com a administração pública.
Apesar disso, a audiência pública é uma janela que, mesmo de forma abafada, deixa entrever as disputas existentes no “Campo” (cultural), conceito ora compartilhado nos termos da obra de Pierre Bourdieu [2], onde enxerga desigualdades e lutas pelo poder.
Problemático mesmo é quando o parlamento abdica de sua característica de poder que deve pensar para o futuro, e faz uso dos regimes de urgência, inspirado apenas na necessidade do aqui e do agora, suprimindo esferas de tramitação e a própria característica de que resulta o seu nome: parlar, falar, discutir, aquilo que passará a ser proibido, permitido ou obrigatório.
No âmbito das normas em si, uma característica frequente, aparentemente democrática, mas efetivamente demagógica, é a prolixidade textual, consistente, por exemplo, em uma repetição quase infinda de princípios e objetivos, na maioria das vezes desnecessários, por já fazerem parte de normas superiores, como a própria Constituição. Mas esse exagero de aparentes boas virtudes geralmente é apenas uma cortina de fumaça para disfarçar delegação de poderes, com remessa de (quase) tudo que é verdadeiramente importante aos regulamentos, tal qual ocorre, por exemplo, com a Lei que institui o Plano Nacional de Cultura de 2010, cujas metas são especificadas em uma portaria [3]!
A execução das normas culturais reflete muito os problemas tratados na sua concepção e elaboração, com destaque para algo que fomenta muito o individualismo, que é a competição entre os destinatários acima nominados, uma vez que se privilegia um instrumento de disputa, o edital, muito próprio para propostas científicas (porque uma pode ser mais eficaz que a outra), mas muito discutível para o setor cultural, principalmente o artístico, cujos critérios de comparação são sempre imprecisos, se não inadequados, porque cada manifestação é potencialmente única.
O individualismo acima tratado tem um componente macroestrutural ainda mais perverso, que é a exclusão do leitor, do espectador, do ouvinte, do cidadão que se importa com a memória da sua cidade, da pessoa que, no domingo em família, ao preparar a comida típica da sua localidade, mantém o ciclo da herança, do patrimônio e do matrimônio cultural.
Nesse quadro das Conferências, tão auspicioso quanto preocupante, ficam os votos para que na gestão cultural brasileira, a democracia, mais que um simples “conceito-grife”, aquele que na irônica observação de Kelsen [4] é o representativo de algo não apreciado verdadeiramente por certas pessoas, mas que se veem obrigadas a exaltá-lo, tanto por obrigação formal, quanto por ser de bom-tom a ele aderir.
E que a cultura, mais que um simples direito (o que a faz, no lugar de criadora, submetida ao universo jurídico), seja percebida como a matriz que gera todos eles e, por conseguinte, a própria vida em sociedade; assim observada, potencializa-se sua força política, gerando um fenômeno que atende pelo nome de cidadania.
Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)
Notas:
[1] CUNHA FILHO, F. H. Afinal, temos ou não direito à cultura? IBDCult, 2021, online: Afinal, temos ou não “direito à cultura” ? (ibdcult.org)
[2] BOURDIEU, P. Campo de poder, campo intelectual. Buenos Aires: Folios, 1983.
[3] BRASIL. Portaria MINC Nº 123, de 13 de dezembro de 2011, online: PORTARIA MINC Nº 123, DE 13 DE DEZEMBRO DE 2011 — Ministério do Turismo (www.gov.br)
[3] KENSEN, H. A Democracia. São Paulo: Martins Fontes (SP), 2000.
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