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Patrimônio da monarquia Savoia, bem público ou particular?


(Crédito: Farabola/Leemage)


Em dois de junho de 1946, por meio de um referendum, os italianos decidiram pelo fim da Monarquia Savoia e pelo estabelecimento definitivo de uma República Parlamentar. Apesar de a Coroa utilizar toda a sua influência, possibilidades e manobras para se manter no poder, os italianos não esqueceram da atitude permissiva do rei Vittorio Emanuele III frente à escalada do regime fascista na Itália e de sua omissão diante das arbitrariedades ditatoriais de Mussolini - dissolução de partidos e sindicatos, supressão das liberdades individuais e coletivas, aliança com a Alemanha nazista e outras - e compareceram em peso às urnas, destituindo-os totalmente do poder. [1]


Logo após ser decretado o fim da monarquia, Luigi Einaudi, presidente à época do Banco Central italiano, a Banca d’Italia, recebeu todas as joias da coroa entregues diretamente das mãos do último rei da Itália, Humberto II. Não se sabe exatamente o valor, a quantidade ou quais sãos os objetos adjudicados, mas se presume um tesouro correspondente a 6.732 diamantes e duas mil pérolas, de diferentes tamanhos, montados em colares, brincos, diademas e vários broches. [2]


Durante todos esses anos, essas joias permaneceram trancafiadas nos porões da Banca d’Italia sem qualquer pedido de restituição por parte da família Savoia. Recentemente, contudo, os netos de Vittorio Emanuele III (Vittorio Emanuele de Savoy e as irmãs Maria Gabriella, Maria Pia e Maria Beatrice) solicitaram oficialmente aos representantes do Banco, ao primeiro-ministro e ao Ministério da Economia, a devolução de tais joias, pedido esse que, por sua vez, foi rejeitado.


Nesse contexto, surge a dúvida sobre a questão da titularidade desse tesouro. Segundo o advogado dos herdeiros, as joias nunca foram confiscadas, mas sim objeto de um acordo de depósito entre o rei e o Banco da Itália, pelo qual, mediante solicitação formal, nos termos do art. 1771 do Código Civil Italiano, deveriam ser imediatamente colocadas à disposição dos herdeiros [3]. Ademais, ainda segundo tal advogado, no “Documento de Depósito” dos bens (Verbale di deposito) menciona-se que as joias entregues eram “joias de dotação da coroa do Reino da Itália”, “dotação” significando bens adquiridos pessoalmente pelos membros da Casa de Savoia ou que lhes foram doados. Portanto, deveriam ser devolvidos aos legítimos proprietários, os herdeiros do antigo rei da Itália.


O Estado italiano, por outro lado, contesta tal argumento, por entender que tais bens estão subordinados à XIII disposição final da Constituição italiana, que determina que os bens dos antigos reis da Casa de Savoia, de seus cônjuges e de seus descendentes do sexo masculino foram legalmente atribuídos ao Estado italiano a partir de dois de junho de 1946. [4]


A questão relativa à propriedade de bens que pertenciam às monarquias e às casas aristocráticas depostas ou extintas não é de fácil solução, de modo que cada país tem tratado cada caso individualmente.


Em território austríaco, por exemplo, em que a Primeira Guerra Mundial desencadeou o fim do poderoso Império Austro-Húngaro, governado, à época, pela Casa de Habsburgo, a Assembleia Nacional da República Austríaca aprovou a “Lei dos Habsburgo” em 3 de abril de 1919, que bania todos os Habsburgo do território austríaco, a menos que renunciassem a todas as pretensões dinásticas e aceitassem o status de cidadãos particulares. Essa lei que, um ano depois, recebeu status constitucional, estabeleceu quais bens dos Habsburgo deveriam ser transferidos para o novo Estado austríaco [5]. Desde o fim da monarquia, contudo, alguns membros da família Habsburgo insistem que parte desses bens lhes deve ser devolvida por serem sua propriedade privada [6]. No momento, o processo está sendo avaliado pelo Tribunal Constitucional austríaco e pela Comissão Europeia de Direitos Humanos [7].


No Brasil, após 124 anos de tramitação, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em junho de 2020, o caso mais antigo da República, determinando que pertence à União o Palácio Guanabara, onde hoje funciona a sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro, não cabendo indenização aos herdeiros da família imperial brasileira pela tomada do imóvel após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.


A ação havia sido iniciada pela princesa Isabel de Orleans e Bragança, em 1895, para reaver a posse do imóvel onde ela e seu marido passaram a habitar após se casarem. A Justiça brasileira entendeu que a família imperial tinha, até a extinção da monarquia no Brasil, o direito de habitar no palácio, mas que a propriedade do imóvel sempre havia sido do Estado, dado que o imóvel tinha sido adquirido com recursos do Tesouro Público e que normas infraconstitucionais editadas ainda durante o Império consideravam que o palácio era destinado somente à habitação da família real [8].


No Reino Unido, para evitar problemas parecidos na eventualidade de abolição do atual regime monárquico, a legislação britânica estabeleceu a existência de uma separação legal entre os bens da Coroa e os bens de propriedade pessoal do/da monarca [9].


Voltando à Itália, independentemente da efetiva titularidade das joias dos Savoia, é importante ressaltar que tal patrimônio sempre permaneceu trancado nos porões do Banco, longe do acesso da população italiana, mesmo diante de inúmeros pedidos de museus e curadores para expor tais objetos à população. Nesse caso, enquanto a Justiça decide a quem pertence a propriedade legítima desse rico patrimônio material e cultural, parece apropriado que tal patrimônio esquecido seja exposto pelo Estado italiano, de modo a permitir que a própria comunidade se beneficie culturalmente dele, o que não só produziria recursos relevantes para a manutenção desses bens, como também propiciaria aos cidadãos uma oportunidade de vivência e de conhecimento de um importante capítulo da fascinante história de seu país.


*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e sócia-fundadora do escritório Studio Mattes (www.studiomattes.com.br)


Luciana Amendola Imbriani Kreidel é advogada empresarial, graduada pela USP, com especializações pela Universidade de Salamanca, pela Fundação Getúlio Vargas, pela ESPM e pelo Insper. É consultora jurídica do escritório Studio Mattes e também pesquisadora independente em arte, história e cultura


[1] Veja Treccani: https://www.treccani.it/enciclopedia/vittorio-emanuele-iii-re-d-italia_%28Enciclopedia-dei-ragazzi%29


[2] https://www.corriere.it/dataroom-milena-gabanelli/tesoro-savoia-gioielli-regina-margherita-dimenticati-banca-d-italia/95e55576-4c79-11ec-93ad-d9e7f28c53fe-va.shtml.


[3]https://www.repubblica.it/cultura/2022/05/16/news/storie_di_storia__3_i_misteri_delle_gioie_della_corona_del_regno_ditalia-349774754.


[4]https://www1.interno.gov.it/mininterno/export/sites/default/it/sezioni/sala_stampa/speciali/altri_speciali/la_norma_di_cui_si_parla/speciale_11_17072.html


[5] https://www.ris.bka.gv.at/GeltendeFassung.wxe?Abfrage=Bundesnormen&Gesetzesnummer=10000038ade de Salamanca, pela Fundação Getúlio Vargas, pela ESPM e pelo Insper.


[6]https://www.habsburger.net/de/kapitel/ein-vermoegen-verliert-seine-besitzerinnen-habsburgervermoegen-nach-1918

[7]https://www.bundestag.de/resource/blob/849340/967441504cd89edded416994e1a32036/WD-1-012-21-pdf-data.pdf



[9]https://commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-8885/


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