A sociedade italiana, atualmente, está passando por um momento político análogo ao brasileiro. Após uma crise que culminou na demissão do primeiro-ministro Mario Draghi, o presidente da República italiano, Sergio Mattarella, dissolveu o parlamento e convocou eleições antecipadas para o próximo dia 25 de setembro. Na Itália, parlamentarista, contudo, não será escolhido o presidente diretamente, a exemplo do Brasil, mas por um processo indireto a partir da votação de representantes no Senado e na Câmara dos Deputados.
No entanto, no presente, o significado das eleições assume uma condição particular. Emerge um clima de incerteza e de desconfiança quanto às perspectivas futuras para a capacidade de renovação e mudança. Trata-se do fenômeno “fadiga democrática”, como ressalta o sociólogo Luc Carton [1], que se traduz por um cansaço social no tocante à capacidade das democracias modernas de solucionar de forma legítima, eficaz e inovativa questões contemporâneas cruciais: as ameaças à biodiversidade, ao ecossistema saudável, ao equilíbrio climático do planeta, à crise energética e ao aumento da fome.
Coloca-se, dessa forma, em risco o próprio processo da democracia representativa. Segundo o pesquisador, há “um desejo imenso de democracia” que não é o de delegar a poucos, mas o de uma democracia a ser construída no cotidiano, um mundo para se representar, para analisar, deliberar e arbitrar, algo comum a se estabelecer [2], onde a dignidade humana é refletida por meio de uma governabilidade assentada em princípios fundamentais de direitos humanos.
O desejo de fraternidade entre os seres humanos, conforme disposto no artigo 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos últimos tempos, caiu numa vala comum, analogicamente, como é hoje o próprio Mar Mediterrâneo. E como se não bastasse o aumento das ocorrências de migração e de miserabilidade provocadas por uma guerra, as ocorrências mais nefastas de uma crise econômica e social se manifestam com maior gravidade no Brasil, quando observamos mulheres e crianças buscando descartes de pele e ossos de animais para comer ou revirando caminhões de lixo, já que 33,1 milhões de brasileiros vivem hoje em grave insegurança alimentar. [3]
A busca de um mundo sem fome, sem conflitos, mais justo, igualitário e pacífico, onde coexistem, dignamente, diferentes povos, classes sociais, culturas, credos e religiões nos remete a uma conjuntura edificada no âmbito dos direitos culturais, como disposto no artigo 1° da Declaração de Friburgo, onde o termo “cultura” abrange “valores, crenças, convicções, linguagens, saberes e artes, tradições, instituições e modos de vida através dos quais uma pessoa ou um grupo expressa sua humanidade e os significados que dão à sua existência e ao seu desenvolvimento”. [4]
Ressalte-se, ainda, os recentes debates na referida área que visam uma nova dimensão dos direitos culturais, situados agora no coração dos Direitos Humanos. Como bem esclarece Patrice Meyer-Bisch [5], do Grupo de Friburgo, no sentido de os direitos humanos constituírem o pilar principal da democracia, tendo em vista que os direitos culturais têm a função de se inserir no âmago de seu sistema, direitos civis, sociais e coletivos. [6]
Para combater tal crescente e perigosa fadiga democrática é fundamental que líderes políticos considerem a construção de políticas públicas a partir de uma análise mais profunda e ampla da dimensão dos direitos culturais. Luc Carton [7], apresenta, nesse sentido, a importância da educação popular, visando uma emancipação cultural em ação coletiva, a ser renovada em todas as circunstâncias da vida social - nas associações, sindicatos e espaços coletivos, assim como nos serviços públicos, no próprio espaço público, virtual e imaterial.
É tempo de formular e implementar uma nova e ambiciosa política de democracia profunda, visando um exercício generalizado dos direitos e dimensões culturais dos direitos humanos.
Uma política transversal questionando e mobilizando todas as políticas e poderes públicos.
O cerne do conflito hoje é de natureza cultural, a se desdobrar num contexto de novas rupturas e considerações visando o exercício generalizado dos direitos culturais e de todas suas dimensões no campo dos direitos humanos. Isto tudo inclui novos compromissos a favor da paz, da solidariedade, dos bens comuns, do combate à fome e outros.
Fundamentos basilares por uma existência digna que, sem dúvida, deveria ser pauta essencial num contexto eleitoral.
*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e sócia-fundadora do escritório Studio Mattes
Notas
[1] Luc Carton é filósofo, sociólogo e vice-presidente do Observatório da Diversidade e Direitos Culturais de Friburgo (Suíça), investigador associado da Associação Marcel Hicter para a Democracia Cultural (Bruxelas).
[2] https://www.rencontres-education-populaire.fr/tribune-de-luc-carton_587.html [3] Conforme pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), com execução do Instituto Vox Populi, apoio e parceria de Ação da Cidadania, ActionAid, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc São Paulo; https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil.
[5] Coordenador do Instituto Interdisciplinar de Ética e Direitos Humanos e Cátedra UNESCO em Direitos Humanos e Democracia, Universidade de Friburgo, Suíça e coordenador do Grupo de Friburgo.
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