Muitos sabem que ao julgar uma lei cearense que dava à vaquejada o status de esporte e de patrimônio cultural, o Supremo Tribunal Federal considerou a referida prática como inconstitucional, por ter entendido que “a obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, [...] veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade”.
Inconformados com a decisão, os defensores da vaquejada e de outros jogos com animais mostraram toda a sua força econômica e política, ao fazerem inserir na Constituição Federal uma norma segundo a qual “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais [...] registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”.
Já que gostam tanto de patrimônio cultural, os responsáveis por esta norma, que poderia ser chamada de “O Estatuto da Crueldade”, construíram um verdadeiro monumento de equívocos jurídicos, contradições e impossibilidades, conforme as seguintes observações.
Ao dizer que “não se consideram cruéis as práticas desportivas” mencionadas, fez uso de algo muito comum no direito, que é a ficção jurídica. Ocorre que tal recurso somente pode ser usado quando for minimamente razoável como, aliás, tudo no universo normativo. É absurdo querer abolir a dor e o sofrimento simplesmente pela edição de uma prescrição legal, pois eles persistem no mundo dos fatos.
No momento em que prevê que as manifestações de jogos com animais devem “ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”, entra em contradição com ficção jurídica que criou, pois se o bem-estar deles estivesse assegurado, qual seria a razão de, por um artifício legal, eliminar a presunção de crueldade?
Por fim, ao condicionar a fictícia ausência de crueldade a que as manifestações sejam “registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro”, tirante a ampliação da situação nonsense, sem querer caiu na própria armadilha, por alguns motivos. O principal deles é que almejando o status de “patrimônio cultural brasileiro”, que é diferente do patrimônio cultural de cada um dos Estados e Municípios, jogou este reconhecimento exclusivamente para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, segundo as regras do Decreto Brasileiro do Registro (o de nº 3.551/2000). Isso significa que estratégias como aprovações parlamentares, em qualquer âmbito da federação, são inócuas e inconstitucionais. Também não cabe Registro, neste caso, em ente federativo diferente da União.
Sendo o IPHAN uma autarquia tecnicamente preparada, conhecedora dos documentos nacionais e internacionais sobre a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, a não ser em caso de completa violação da sua autonomia, jamais reconhecerá, com tal status, esse tipo de manifestação que agride reflexamente os direitos humanos e diretamente o desenvolvimento sustentável e harmônico com a natureza.
O fato é que os jogos que transformam o sofrimento dos animais em divertimento permanecem visceralmente inconstitucionais, não apenas pelas imperícias da legislação aqui contestada, mas sobretudo porque servem para dessensibilizar as pessoas e, por conseguinte, vilipendiar não somente aqueles seres, mas a própria ideia de dignidade humana.
Fortaleza, 22 de julho de 2020.
Humberto Cunha Filho
Doutor em Direito e Professor de Direitos Culturais na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”.
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