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Leis de emergência cultural e o deus chamado dinheiro



Aristófanes foi um comediógrafo do Século de Péricles, tendo vivido, portanto, há aproximadamente 2500 anos dos nossos dias. O fato de ter escolhido a comédia como forma de expressão, o colocou na contramão do seu tempo, porque à época eram admirados e valorizados os tragediógrafos, como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.


Enquanto artista, o seu objetivo principal era o de fustigar os demagogos que, como os de hoje, disfarçam-se de democratas, mas que destes diferem, no apurado final, por defenderem os interesses próprios, fingindo-se de benfeitores.


Da mira de Aristófanes não escaparam os vendedores de narrativas (Revolução das Mulheres), os sectários políticos (As Vespas), os sabe-tudo (As Nuvens), os lascivos (Lisistatra), nem os corruptos, que agiam até mesmo contra as divindades, como na peça “Pluto, um deus chamado dinheiro”.


O enredo é bem simples: Pluto, o distribuidor de dinheiro, é uma divindade secundária, mas o seu poder de “convencimento” é tão grande que o próprio Zeus, o deus dos deuses, sente-se por ele ameaçado em termos da preferência dos mortais, razão pela qual cega o seu concorrente para que ele não saiba a quem está conferindo fortuna. Porém, os corruptos humanos atuam no sentido de devolver a visão e controlar a vontade de Pluto, que passa a beneficiar a quem não devia.


Esse pano de fundo mitológico e metafórico é adequado a ser utilizado como advertência às legislações que ainda se lastreiam no argumento da pandemia, por meio das quais se reserva certo valor para cada Estado e Município, a fim que apliquem em atividades culturais, mesmo que não tenham demanda para tanto.


A falta de demanda, porém, não parece ser um problema para quem orienta a que sejam criados “planos bem simples e sem muitos detalhamentos, porque, depois de aprovado isso se resolve”, o que certamente será feito com o apoio de um exército de consultores, que vão vender suas assessorias e projetos padronizados, os quais serão replicados em todo o país de dimensões continentais, afetando gravemente a ideia de diversidade cultural, que corresponde a um fundamento tanto da nossa República, especificamente, quanto das federações, em gênero.


Por um lado, quantos riscos encobertos pelo queridíssimo deus chamado dinheiro! Por outro, quanto loucura de quem adverte sobre isso, diante de uma turba de fiéis tão fervorosos!


Claro que o setor cultural merece, melhor, tem o direito constitucional, previsto no Art. 216, § 3º, a que a lei estabeleça “incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais”; porém, no cumprimento desta norma, não se pode esquecer o sopesamento, também presente na Carta Política, de que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (Art. 5º, IX), elementos cujas violações geralmente se manifestam sutilmente pelas induções, padronizações, discursos e práticas que correspondem a dirigismos que o argumento do dinheiro é um dos poucos a ocultar com eficiência.


Neste ponto não se pode esquecer que a cultura é a base geradora de todos os outros campos da intersubjetividade humana, como o direito, a filosofia, a ética e os demais. Como mãe generosa, abre espaço para as suas criaturas, quando elas são priorizadas. Assim, numa relação em que prepondera a economia, mesmo que envolva artes e outras manifestações culturais, a cultura é, na melhor das hipóteses secundarizada e subalternizada, o que lhe rende fragilidade e leva à eliminação do seu caráter diverso e potencialmente libertador.


Uma lei de distribuição de dinheiro para o setor cultural em período de crise, como foi a pandemia, tem realmente caráter social de manutenção da vida humana, sem a qual não há cultura. Em períodos outros, deve estar a serviço do cultivo (colère) das relações humanas, das relações sociais e comunitárias, com a preocupação de que a cultura seja a equilibradora dos diversos campos das relações e promotora da aproximação da humanidade consigo própria.


Permitir que a economia e o individualismo preponderem é repetir o erro de transformar a comunidade cultural, como já foi feito com os cidadãos, em meros consumidores, status que os torna ávidos pelo deus chamado dinheiro, para cuja obtenção, deste os tempos imemoriais, vale a regra pragmática, matriz das infidelidades, representada pela pergunta: “quem dá mais?”. Por isso, os cuidados devem ser multiplicados para que o dinheiro esteja em função da cultura, e não a cultura em função do dinheiro.

*Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e (F)atos, Política(s) e Direitos Culturais (Dialética – SP)

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