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Já começou a circular o expresso 2022 ou a crise memorial das cidades brasileiras

Atualizado: 31 de jan. de 2022



A cidade de Fortaleza, na qual eu moro, é constantemente acusada de não ter memória, de destruir as coisas que remetem ao passado, de possuir uma estrutura muito frágil de museus... É raro o mês em que não surge um clamor contra a derrubada de uma construção antiga para dar lugar a um prédio espelhado que amplifique ainda mais a luz do sol e projete a miragem da água do mar e/ou do céu quase sempre límpido e azulado.


Na minha condição de jurista, não ouso contestar essas evidências, por considerar que as explicações do fenômeno deveriam ser buscadas por quem tem preparo para tanto, como os antropólogos e os sociólogos, que deveriam nos ajudar a ter respostas para questões intrigantes: a cidade ainda busca a sua identidade? Há trauma coletivo de um passado de sofrimento do qual (in)justificadamente e (ir)racionalmente se foge? É pura maldade de pessoas que só pensam em dinheiro? A população não tem apego à suas raízes e por isso não se importa efetivamente com as destruições mencionadas?


Esses enigmas da relação de Fortaleza com o passado ficam ainda mais evidentes nos apelos que a cidade faz em relação ao porvir, quando, exemplificativamente, batiza importante parte de sua orla marítima de “Praia do Futuro”, designação de lugar que, sempre ao ser ouvida pela primeira vez, nos projeta para aquilo que ainda há de chegar.


Fortaleza também possui um hoje sofrido bairro chamado “Cidade 2000”, que se agora remete a uma época pretérita, para a meninada da minha geração dos nascidos na década de 1960, a pronúncia do nome deste lugar nos conectava com robôs, espaçonaves e telefones sem fios, iguaizinhos aos que víamos em séries de TV, como a original de Perdidos no Espaço.


A “Loira Desposada do Sol”, um dos epítetos de Fortaleza, a despeito de a cidade ser povoada de estátuas da fictícia índia Iracema, cantou a plenos pulmões o refrão da música “Expresso 2222”, de Gilberto Gil, imagino que pela razão de o trem futurista ir “pra depois do ano 2000”, ter uma estação de “de vento, de fogo, de água e sal”, e o trilho ser “feito um brilho que não tem fim”. Era a mesma lógica e semelhante reação ao “Táxi Lunar”, de Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valença, mas que todos pensavam ser do Pessoal do Ceará, uma vez que tal veículo espacial/especial podia ser apanhado na Beira Mar, a nossa, é claro!


Pelas perspectivas lançadas, é provável que Fortaleza tenha problemas com o passado, pois não o protege adequadamente; mas também com o futuro, que nunca chega ou, quando chega, quase sempre decepciona; portanto, é uma cidade que aposta no presente, também defeituoso, pela falta de raízes e ponderadas projeções, o que a faz ser uma das urbes recordistas dos índices de desigualdade econômica e social.


Fortaleza, por óbvio, se quiser, pode voltar a ecoar os refrões de Gil, Zé, Geraldo e Alceu, mas a sua melhor atitude seria a de, ao lado disso, antecipar-se em 200 anos à passagem dos poéticos veículos, uma vez que o de número 2022, tão evocativo de efemérides centenárias, como a Independência Brasil (200 anos), a Padaria Espiritual (130 anos) e a Semana de Arte Moderna (100 anos), desde ontem está à sua disposição e, quiçá, pedir aos condutores, vez por outra, para darem respeitosas marchas às ré, não por gratuitos saudosismos, mas para encontrar os fundamentos que nos levem, de forma humanizada e segura, de volta para o futuro, desta feita, preferencialmente justo e equilibrado.


Falei de Fortaleza, pois a amo como filho adotivo e cidadão honorário, mas certamente muitos leitores refletiram que se no lugar da Capital do Ceará esse texto contivesse o nome da sua cidade, com adaptações de nomes, estaria de bom tamanho, o que se for exato, permite-me a ousadia de convidar as distintas comunidades culturais para elegermos 2022 como o ano de reconciliação entre o passado, o presente e o futuro das nossas cidades, a partir da adequada percepção e salvaguarda dos seus patrimônios culturais.

Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).

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