Farinha de grilo comercializada pela Cricket One, que detém o monopólio na União Europeia |
Foto: Reprodução/Cricket One
“Farinha de grilo... Não, obrigado. Se alguém na Europa gosta de comer insetos, vá em frente. Para os meus filhos, prefiro os sabores e aromas da nossa terra e os defendo. E você?”. Essa mensagem foi publicada recentemente nas redes sociais pelo vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini contra o novo regulamento europeu (Regulamento de Execução (EU) nº 2023/5 da Comissão Europeia), que entrou em vigor em 24 de janeiro passado, autorizando a comercialização de farinha de Acheta domesticus (grilo doméstico).
Certamente que tal político italiano, utilizando uma linguagem exaltada e midiática para seduzir os seus seguidores, desconsiderou a realidade atual dos fatos e das leis europeias, pois os chamados "Novos Alimentos" (Regulamento (CE) 258/97) são regulados desde 1997 e alguns insetos para fins alimentares são autorizados e consumidos na Europa desde 2018.
Eles são empregados principalmente como ração animal, sendo que o Acheta domesticus é o terceiro inseto que a Comissão autoriza como alimento para humanos. Temos ainda o gafanhoto migratório e a farinha da larva Tenebrio Molitor que foram autorizados em 2021, sendo que esta última é comercializada desde 2022.
Esses insetos podem ser facilmente congelados, utilizados a seco e em pó, e o objetivo é o de chegarem à mesa através uma série de alimentos como pães, sanduíches, biscoitos, torradinhas, barras de cereais, em massas, pizzas ou produtos à base de chocolate, mas também em preparações à base de carne, produtos substitutos e sopas.
Tal decisão faz parte da política europeia alimentar Farm to Fork (Fazenda ao Garfo) que visa, em dez anos, a transição para um sistema alimentar mais sustentável, já que, segundo a Comissão, os insetos são uma fonte alternativa de proteína que, se adotada, poderia reduzir consideravelmente o impacto da nossa dieta na poluição ambiental.
Assim, para o setor alimentício em geral e para os Estados, os insetos são de grande interesse, pois além de fonte alimentar altamente nutritiva, fornecendo proteínas de alta qualidade comparáveis à carne e ao peixe, os insetos comestíveis podem diversificar as dietas, melhorar os meios de subsistência, contribuir para a segurança alimentar e nutricional, para maior soberania alimentar e para um ambiente mais sustentável.
Para a FAO (órgão das Nações Unidas sobre alimentos e agricultura), o aumento populacional e a escassez de recursos naturais justificam a utilização dessa alternativa alimentar. Em estudo publicado recentemente [1], essa instituição da ONU ratificou que os insetos facilitarão o estabelecimento de um caminho multidisciplinar para os Estados promoverem a soberania e a segurança alimentar. E, do ponto de vista ambiental, segundo tal estudo, eles têm uma alta eficiência de conversão nutricional, em média podem converter dois quilos de alimentos em um quilo de massa, enquanto um gado precisa de oito quilos de alimentos para produzir o acréscimo de um quilo de peso corporal.
No Brasil, a comercialização e produção ainda é muito artesanal, sendo que o consumo existente é, fundamentalmente, tradicional e em algumas comunidades específicas. Como o do “bicho do tucumã” na Ilha de Marajó, as formigas saúva ou tanajura, além de cigarras, cupins e gafanhotos no Alto Xingu e as formigas tanajuras ou içás na Zona Rural de Minas Gerais e no Vale do Paraíba. A maioria dos produtores de insetos, sobretudo os que visam ao mercado de alimentação humana, trabalha com grandes expectativas regulatórias, comerciais e econômicas, mas ainda de maneira informal [2].
O cenário parece muito atrativo, contudo, alguns pontos devem ser observados atentamente.,a exemplo da questão da proteção e difusão do patrimônio cultural alimentar tradicional. Se analisarmos a alimentação tradicional europeia, centrada nos alimentos clássicos, como os da dieta mediterrânea, seria provável que os insetos substituíssem fontes tradicionais de proteína? A busca de alimentação adequada, assim, não pode desconsiderar a produção local e a realidade cultural dos países em que insetos, mesmo sendo sustentáveis e rico em proteínas, estão muito longe da culinária local tradicional.
Nesse sentido, a chegada dos insetos à mesa levanta questões às quais ainda é preciso refletir, não considerando somente métodos de produção, economia, origem e rastreabilidade, mas ponderando culturas milenares e o papel da comida e dos modos de alimentação como marcadores de identidade, de significados culturais como do bem-viver, da identidade e do território onde grupos vivem, plantam, colhem, cozinham e comem.
Anita Mattes, Doutora pela Université Paris-Saclay, Mestre pela Université Panthéon-Sorbone, Professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Notas
[2] Veja trabalho de TUNES, Suzel. Insetos comestíveis. Revista FAPESP, edição 290, abril 2020, disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/insetos-comestiveis, acesso 3/2/23
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