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Exegese jurídica e direitos culturais: considerações sobre o marco normativo da Lei Paulo Gustavo



O Decreto nº 11.525 de 11 de maio 2023, que regulamenta a Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195, de 8 de julho de 2022) foi lançado na última semana, na Bahia, onde também ocorreu o seminário sobre o mesmo, incentivando o debate com a sociedade civil sobre este importante marco legal.


Aqui, parabenizo, independentemente de eventuais divergências ao Ministério da Cultura (MinC), pelo esforço e compromisso no diálogo com a sociedade civil e pela criação de Secretaria Nacional específica para dar apoio aos Estados e Municípios. O desafio será enorme e um dos mais complexos – contribuir com a atualização de procuradorias municipais, estaduais e assessorias jurídicas para que possam priorizar a efetivação de política pública e o uso dos novos marcos legais. É preciso uma correta exegese jurídica, por meio de interpretação teleológica do arcabouço normativo em nosso dispor para efetivar os direitos culturais!


Muitos aspectos merecem destaque no Decreto no 11.525/2023 – i. simplificação do plano de ação; ii. possibilidade de remanejamento, na hipótese de não haver quantitativo suficiente de propostas; iii. previsão e limites para contratações de consultoria; iv. destinação específica para garantir acessibilidade cultural; v. medidas de democratização por meio de ações afirmativas; vi. obrigatoriedade em consolidar os sistemas de cultura ou a implantá-los, entre outros.


Para fins de evidenciar a necessidade do diálogo com as procuradorias, vamos eleger um dos aspectos mais centrais para este debate – a forma de prestar contas das ações desenvolvidas pelos trabalhadores de Cultura para o Estado e, principalmente, para a sociedade. Antes de apontar os aspectos da norma em questão é preciso compreender qual o objetivo de solicitar prestações de contas de projetos culturais.


A resposta mais simples seria – para evitar desvios do recurso público, mas esta explicação está incorreta e ela justifica um estado punitivista, que está mais preocupado em condenar do que em promover direitos.


A resposta mais adequada para uma democracia é -porque a sociedade deve saber como o recurso foi investido e quais os benefícios (resultados) foram obtidos. É preciso – e venho insistindo nisso – fazer a transição do accountability financeiro para o accountability de resultados.


Os técnicos dos estados precisam ser capazes de gerar relatórios de inteligência para avaliar o efetivo impacto da política pública, o quantum de economia tem sido estimulado a partir da cultura, avaliar indicadores.


Muito mais do que solicitar certidões negativas em contratações com terceiros realizadas por agentes culturais, solicitar cotação de preços nas contratações realizadas por instituições culturais para execução de suas ações não é prioritário e demonstra a incapacidade de a gestão pública focar no que importa – quanto a Lei Paulo Gustavo vai contribuir com o enfrentamento ao racismo, por exemplo, conforme objetiva o disposto no art.17, LC no 195 [1].


Atualmente é mais fácil prestar contas de obras públicas do que de projetos culturais [2]. Ora, vamos convir que se o Estado fomenta a produção audiovisual, ela precisa receber e avaliar a qualidade do produto desenvolvido e não se preocupar se houve mais gasto com o roteirista e menos gasto com edição. Pedir três orçamentos para serviços de libra não é necessariamente mais adequado do que contratar profissional mais qualificado cujo valor é pouco maior do que o de uma empresa recém-criada.


Parece-nos importante adicionar que o modo de execução destes recursos [3], os instrumentos jurídicos firmados [4] e os relatórios de prestação de contas [5] deverão observar o disposto no Decreto no 11.453, de 23 de março de 2023, o novo decreto do fomento, que é um excelente marco normativo para mitigar as críticas acima apresentadas. (Sugiro inclusive para quem tenha interesse em aprofundar o tema - aula sobre decreto de fomento [6], ministrada por importante membro da AGU).


O Decreto no 11.453, de 23 de março de 2023, estabelece o seguinte: “Art. 9º Os chamamentos públicos das políticas culturais de fomento observarão o disposto nesta Seção, exceto na hipótese de haver previsão de outro procedimento específico em regime jurídico aplicável ao instrumento escolhido pela administração pública.”


Ou seja, poderá ser aplicado a Lei nº 13.019 para a celebração de parcerias para a consecução de atividades culturais, bem como para realização de consultorias, exceto para atividades de execução exclusiva do Estado, por óbvio [7]; premiação cultural; bolsas culturais; termo de execução cultural e termo de compromisso cultural e em situação excepcionalíssima na contratação de bens e serviços comuns e não finalísticas a Lei nº 14.133 [8].


Ora, o primeiro desafio aqui será com base em análise estratégica definir quais instrumentos utilizar, pois a forma de prestar contas, a incidência tributária e os procedimentos para parcerização ou contratação variam, em certa medida, pela escolha. Aqui, como garantir os instrumentos mais eficazes quando na maioria das vezes as procuradorias sequer conhecem o arcabouço normativo pertinente ao fomento cultural? Acredito que a contratação de consultorias, especialmente de entidades especializadas em gestão cultural poderá ser determinante.


Com vistas em aprimorar os mecanismos de prestação de contas com base no objetivo de fato do fomento cultural é que a Lei - e agora o decreto - já estabelecem a possibilidade de dispensar prestação de contas de projetos de menor complexidade, mediante relatório após visita in loco, como forma de monitoramento pela equipe da Administração Pública.


Esta modalidade é excelente para projetos com pouco recurso e dificuldades técnicas na elaboração de relatório. É possível haver prestação de informações com base em relatório exclusivamente de execução do objeto. Aqui, deverá o ente federativo elaborar com cautela quais são as informações imprescindíveis.


A ideia deste relatório não deve ser de mero atesto do cumprimento, mas de contribuir com a avaliação posterior da ação por meio de dados. Dever-se-ia tratar de b.i. (business intelligence) da Administração Pública, de modo que devem ser inseridos nestes – avaliação de impacto, quantitativos dos beneficiados direta e indiretamente da política pública, avaliação dos cidadãos beneficiados sobre a ação cultural, apontamentos das principais dificuldades, sugestões para aprimoramento. Estas modalidades apenas poderão ocorrer quando o apoio recebido tiver valor inferior a R$ 200 mil [9].


A prestação de contas com relatórios de cumprimento de objeto e de execução financeira poderá ser aplicada a projetos mais complexos e devem ser cobrados quando não for comprovado o cumprimento do objeto, quando houver denúncia de irregularidade sobre a execução da ação cultural e quando o valor total do projeto for superior a R$ 200 mil reais.

Por mais que haja críticas a algumas normas e interpretações – e as tenho – é evidente o verbete: O MinC voltou! Existe indubitavelmente um esforço na criação deste arcabouço normativo (sobre o qual comentei brevemente com base em um dos pontos) com a edição dos decretos - no 11.525/2023 e no 11.453/2023.


Agora, por mais que haja avanços normativos, a aplicação destes avanços em favor da efetivação dos direitos culturais dependerá muito da capacidade de planejamento e inteligência na exegese da norma por parte de Estados e Municípios. Trata-se de legislações recentes, de alto impacto e complexas.


Agora é o tempo de debater direitos culturais com as assessorias jurídicas e com as procuradorias, pois não será suficiente dialogar com gestores e estabelecer minutas padrões, embora imprescindível.

*André Brayner é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor, professor de Direito e Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Nota


[1] Art. 17. Na implementação das ações previstas nesta Lei Complementar, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão assegurar mecanismos de estímulo à participação e ao protagonismo de mulheres, de negros, de indígenas, de povos tradicionais, inclusive de terreiro e quilombolas, de populações nômades, de pessoas do segmento LGBTQIA+, de pessoas com deficiência e de outras minorias, por meio de cotas, critérios diferenciados de pontuação, editais específicos ou qualquer outro meio de ação afirmativa que garanta a participação e o protagonismo desses grupos, observadas a realidade local, a organização social do grupo, quando aplicável, e a legislação relativa ao tema.

[2] Observe, caro leitor, que estranho: quando se trata de licitação para execução de obras, por exemplo, em que uma das partes está ali para lucrar e o Estado pelo serviço, o controle é feito por medição, por entregas e não cobra-se ‘lista de fornecedores’, orçamentos que a empresa contratada exigiu de terceiros, homologação e adjudicação de objetos a serem comprados, mas sim os resultados. Já nas parcerias na cultura em que os aportes são em regra extremamente tímidos, o resultado já não importa. Ou seja, constitui-se parceria, novamente meramente exemplificativo, para realização de carnaval com 15 bandas, 5 oficinas e 7 intervenções artísticas. Todas acontecem, mas aqui o Leviatã não se importa com o resultado. Ora, o Estado atesta a realização das atividades, financiou sua realização, mas querem exigir a devolução integral por atraso na prestação de contas? Por que a entidade não cumpriu uma formalidade nas cotações de preço? Trata-se de enriquecimento ilícito do Estado. Esta questão, aliás, é bem difundida no judiciário, mas muito poucas entidades possuem assessoria jurídica que possa reverter estas condenações. BRAYNER, André. O Leviatã contra a Cultura: O enriquecimento ilícito do Estado nas parcerias com a sociedade civil. (disponível aqui)

[3] Art. 11. A execução dos recursos de que trata este Decreto pelos entes federativos ocorrerá por meio de procedimentos públicos de seleção, observado o disposto no Decreto nº 11.453, de 2023.


[4] Art. 4º Os recursos a que se refere o inciso II do caput do art. 2º serão disponibilizados conforme os procedimentos previstos no Decreto nº 11.453, de 2023, de acordo com a modalidade de fomento [...].


[5] Art. 27. Para fins do disposto neste Decreto, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão editar regulamento com os procedimentos necessários à aplicação dos recursos recebidos no âmbito do ente federativo, observado o disposto na Lei Complementar nº 195, de 2022, neste Decreto, nos regulamentos e nas instruções normativas e orientações editadas pelo Ministério da Cultura. [...]


IV - minutas de relatórios de prestação de informações e de pareceres técnicos de análise desses relatórios, conforme o disposto no Decreto nº 11.453, de 2023


[6] Disponível em https://www.youtube.com/live/yWauFaZr1jk?app=desktop&feature=shares

[7] O disposto no art.18, § 1º parece-nos óbvio demais ao vedar a delegação de competências exclusivas do Poder Público e com potencial para causar confusão conceitual. Deixemos aqui registrado – cultura não é de competência exclusiva e a definição destas atividades não é subjetiva, mas decorre por determinação constitucional ou legal, tais como segurança pública, diplomacia, tributação, arrecadação e fiscalização de tributos federais.

[8] Na execução de recursos de que trata esta Lei Complementar não se aplica o disposto no art. 184 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Art.19 Lei Paulo Gustavo (LC no 195/2022)


[9] Decreto nº 11.453, de 2023. Art. 51. A metodologia de prestação de contas dos programas, dos projetos e das ações culturais financiados com recursos do mecanismo de incentivo fiscal será estabelecida a partir de matriz de risco adotada pelo Ministério da Cultura, observados os seguintes procedimentos:


I - nos projetos cujo montante dos valores captados seja de pequeno porte, a definição da categoria de prestação de informações aplicável ao caso concreto observará o disposto nos art. 29 a art. 34;


II - nos projetos cujo montante dos valores captados seja de médio porte, o relatório de execução do objeto e o relatório de execução financeira serão exigidos em todos os casos, vedada a adoção da categoria de prestação de informações in loco; e


III - nos projetos cujo montante dos valores captados seja de grande porte, o relatório de execução do objeto e o relatório de execução financeira serão exigidos em todos os casos e haverá plano de monitoramento específico para a ação cultural.


Art. 29. O agente cultural que celebrou o termo de execução cultural prestará contas à administração pública por meio das seguintes categorias:


I - prestação de informações in loco;


II - prestação de informações em relatório de execução do objeto; ou


III - prestação de informações em relatório de execução financeira.


Art. 30. A prestação de informações in loco poderá ser realizada quando o apoio recebido tiver valor inferior a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), nos casos em que a administração pública considerar que uma visita de verificação será suficiente para aferir o cumprimento integral do objeto.

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