A ruína do Rei Creso e a Deusa Nêmesis: os direitos culturais brasileiros frente ao tarifaço norte-americano
- Blog Opinião

- 14 de out.
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André Vitorino de Alencar Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, Sócio do BRA Advocacia Artística & Cultural, Presidente do Instituto de Direitos Culturais - IBDCult
Edson Alves da Silva Filho, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, professor universitário e sócio do BRA Advocacia Artística & Cultural

A história de Creso, último rei da Lídia, retrata bem os excessos humanos que atraem a justa retribuição divina. Creso, famoso por suas riquezas, acreditava ser protegido contra o infortúnio, até que Nêmesis, deusa da retribuição e do equilíbrio, o conduziu à derrota diante de Ciro, famoso rei persa.
Ao consultar um oráculo, Creso foi levado por Nêmesis a acreditar que o reino da Pérsia seria derrotado com a invasão de seu exército, quando na verdade a Lídia foi invadida e derrotada. Assim, a desmesura e a arrogância (hybris) foram a ruína de Creso.
Transportando o mito para hoje, a política tarifária imposta pelos Estados Unidos da América a produtos brasileiros revela-se como um ato do Creso moderno, encarnado por Donald Trump. A confiança no poder econômico, alicerçado em largo período de hegemonia, o leva a crer que medidas protecionistas unilaterais são apenas mais uma expressão de força, sem risco de reação.
Todavia, os direitos culturais, ao expressarem a cultura nacional na sua dimensão simbólica do povo brasileiro, operam como poderosa arma da deusa Nêmesis dos tempos atuais.
Com efeito, a cultura brasileira, marcada pela diversidade, pela mestiçagem e por dinamismo próprio, tem se consolidado como patrimônio imaterial de alcance global. O samba, a bossa nova, o futebol, a literatura modernista e o cinema nacional transcendem as barreiras econômicas.
Ainda que o tarifaço limite o fluxo de mercadorias tangíveis, não pode aprisionar o simbólico da cultura. Ao contrário, quanto mais se ergue a barreira material, mais intensa tende a ser a circulação imaterial.
Nesse sentido, a resposta da cultura nacional por meio do ordenamento jurídico ao isolacionismo econômico estadunidense deve ser dupla. No plano interno, mediante o fortalecimento da consciência de artistas, intelectuais e produtores culturais, com a reafirmação da potência criativa de um país que, apesar dos desafios sociais e políticos, insiste em afirmar as suas expressões culturais.
Já no externo, a cultura deve se pautar como soft power: criar vínculos, inspirações e diálogos que escapam ao controle de governos. Ainda que impeça aviões carregados de aço ou caminhões repletos de suco de laranja e café, nada consegue restringir a difusão de uma canção de Caetano Veloso, da obra de Clarice Lispector, do talentoso trabalho do cearense Karim Aïnouz e da interpretação de Wagner Moura.
Assim, a retribuição da “Nêmesis cultural” ao “Creso norte-americano” não deverá ocorrer pela via da pura vingança, mas pela ironia histórica: quem busca conter o outro pela força do mercado termina confrontado por um fluxo simbólico que não reconhece fronteiras e acaba derrotando o opressor.
Se as tarifas pretendem limitar, a cultura expande. Se o comércio se fecha, a criação se multiplica. Nessa dinâmica, a cultura brasileira não apenas resiste, mas devolve ao mundo, inclusive aos Estados Unidos, uma lição de pluralidade, solidariedade e inventividade. E é aí que entra o papel dos direitos culturais a partir da supremacia da Constituição de 1988.
Talvez seja nesse ponto que o mito de Creso se torne ainda mais atual. O poder econômico, por maior que seja, não é absoluto. Quando confrontado com a força simbólica da cultura, revela toda a sua fragilidade. E a deusa Nêmesis, ao conter os excessos e equilibrar o jogo, relembra que nenhuma potência pode se considerar imune ao retorno daquilo que tenta suprimir. A cultura brasileira, nesse contexto, é a ruína e, ao mesmo tempo, a renovação: ruína para o protecionismo que a tenta reduzir e renovação para o mundo que dela se alimenta.
Por isso, urge o fortalecimento dos direitos culturais previstos na Constituição Federal de 1988 a partir do artigo 215 e, assim, a sua permanente renovação e atualização, o que envolve todo o conteúdo do ordenamento jurídico cultural brasileiro, com a intensificação da proteção dos Direitos Autorais e da Propriedade Intelectual no território nacional, além da ampliação do fomento público às iniciativas de artistas e grupos eminentemente nacionais, força da expressão simbólica do país.
Sobre o caráter de direitos fundamentais que assumem os direitos culturais na Constituição brasileira, Humberto Cunha Filho (2004, p. 49) faz a devida interlocução entre tais direitos e o princípio da dignidade da pessoa humana ao afirmar que a cultura é para o mundo jurídico a produção humana voltada para as artes, memórias coletivas e repasse de saberes, bem como o seu aprimoramento, e, assim, os direitos a ela inerentes possuem local privilegiado na positividade constitucional, independentemente de não constarem à exaustão topologicamente no Título II, da Carta Cidadã, onde é definida grande parte dos direitos e garantias fundamentais.
Como enfatiza José Afonso da Silva ao se referir que “A Constituição de 1988, como observamos antes, deu relevante importância à cultura, [...] formando aquilo que se denomina ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural” (SILVA, 2006, p. 837). E somente existirão homens livres de forma plena, se houver o comprometimento do Estado em assegurar-lhes não só o respeito, mas também a viabilização de suas produções, garantindo-lhes não só “o conhecimento e uso do passado para interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão referentes ao futuro” (CUNHA FILHO, 2018, p. 28).
É nesse cenário, por exemplo, que as big techs impõem uma nova forma de barreira: o tarifaço digital. Controlam algoritmos, ditam visibilidade, exploram dados e monetizam conteúdos sem a justa retribuição aos criadores locais. A reação brasileira, aqui materializada como pleno exercício dos direitos culturais, torna imperiosa a atualização da legislação cultural brasileira e do uso permanente e contínuo dos seus mecanismos de proteção, como a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) e a ampliação dos debates sobre a regulação de plataformas, streaming, design e gamers, expressões concretas do protecionismo constitucional da cultura nacional frente ao poder econômico estrangeiro.
Trata-se, portanto, de uma atualização da figura de Nêmesis: não apenas a arte e a criatividade brasileiras resistindo em si, mas por meio do próprio ordenamento jurídico que as resguarda, o qual se ergue como uma arma divina e poderosa de Nêmesis na mobilização de todas as garantias constitucionais da cultura no enfrentamento dos arroubos estrangeiros, fazendo com que o rei Creso se perca em sua própria arrogância. Parafraseando Caetano quando compôs no auge do exílio em Londres em 1972 a música “You Don’t Know Me”, que os operadores do Direito possam depois agradecer aos direitos culturais e a todo o povo brasileiro.
Referências:
CUNHA FILHO, Humberto et al. Cultura e Democracia na Constituição Federal de 1988: representação de interesses e sua aplicação ao Programa Nacional de Apoio à Cultura. 2004.
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2013.
____ . Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.








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