Entre tarifas e direitos: propriedade intelectual como resposta jurídica à taxação de Trump
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André Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, direitos culturais e terceiro setor, professor de Direito e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

A propriedade intelectual divide-se em alguns campos, mas seguramente tanto o campo das patentes como o dos direitos autorais representam, neste momento, uma possibilidade assertiva do uso da lei de reciprocidade de maneira pontual contra a taxação geral e indiscriminada por parte do governo de Donald Trump.
O uso indistinto da Lei nº 15.122, de 11 de abril de 2025, seria um equívoco e prejudicaria ainda mais a sociedade brasileira, razão pela qual devemos apresentar elementos de resposta possível e necessária para o País. Afinal, jamais devemos sucumbir aos impulsos neocolonialistas.
A imposição de tarifas comerciais unilaterais pelos Estados Unidos, especialmente durante a administração Trump, afetou significativamente diversos países, incluindo o Brasil. As sobretaxas adotadas sobre produtos como aço e alumínio, justificadas sob argumentos de segurança nacional e proteção da indústria americana, representam, em realidade, uma prática comercial agressiva que contraria princípios do comércio internacional e impacta de forma indireta o gozo de direitos fundamentais no Brasil.
A ofensiva tarifária estadunidense carrega um componente ideológico e trata-se de uma forma de dominação simbólica travestida de política econômica. Ao impor barreiras sem critérios objetivos e sem respeito à pluralidade, o Governo dos Estados Unidos ataca não apenas a economia, mas as liberdades coletivas e individuais que se expressam por meio da diversidade cultural.
Os Direitos culturais, que são um conjunto de direitos fundamentais que garantem a todas as pessoas o acesso, a participação e a liberdade para criar, expressar e preservar suas próprias culturas, estão diretamente ligados à dignidade da pessoa humana. Isso porque reconhecem o papel central da cultura na identidade, no pertencimento e no desenvolvimento individual e coletivo. Assim, esta ofensiva à soberania nacional ataca as liberdades coletivas e individuais, tratando-se de uma ameaça direta à autonomia dos Poderes da República com base em elementos ideológicos e não condizentes com o respeito à diversidade do pensamento.
Nesse contexto, a resposta brasileira não pode ser genérica ou reativa. É preciso adotar uma postura estratégica, fundamentada na legalidade e nos interesses nacionais. A Lei nº 15.122, de 11 de abril de 2025, surge como um instrumento jurídico legítimo e atual ao permitir a aplicação do princípio da reciprocidade internacional, com base em critérios objetivos de dano econômico e na assimetria comercial.
Essa legislação estabelece que, diante de condutas lesivas de países parceiros, o Brasil poderá aplicar medidas específicas de retaliação, priorizando setores em que haja maior dependência do mercado brasileiro. O foco recai, portanto, sobre áreas em que o Brasil possui poder de barganha, e que, ao mesmo tempo, envolvem baixa repercussão negativa sobre sua própria economia interna.
Entre esses setores, destaca-se, com clareza, a propriedade intelectual. Produtos como jogos eletrônicos, redes sociais, softwares, plataformas de vídeo sob demanda, sistemas operacionais e dispositivos de interface digital representam grande parte do consumo cultural no Brasil, sendo em sua maioria controlados por empresas estadunidenses como Google, Meta, Amazon, Apple, Microsoft e Netflix.
Estudos recentes apontam que apenas o setor de streaming audiovisual gerou mais de R$ 8 bilhões em receitas no Brasil em 2023 (PwC, 2024), enquanto o setor de games movimentou mais de R$ 14 bilhões (Newzoo, 2023). No entanto, o retorno tributário efetivo dessas plataformas é desproporcional ao seu faturamento, havendo significativa evasão por meio de regimes internacionais de otimização fiscal.
Do ponto de vista técnico, a taxação de bens culturais e digitais requer adequações na legislação tributária. A proposta de Reforma Tributária no Brasil (PEC 45/2019 e PEC 110/2019) e projetos como o PL 2339/2022, que visa regular o setor de vídeo sob demanda (VoD), já apontam para essa direção. Tais medidas podem ser acompanhadas de políticas de fomento à produção cultural nacional, garantindo que os valores arrecadados retornem à população sob forma de políticas culturais.
Além disso, o Brasil pode se valer da Resolução nº 43/2021 do Parlamento do Mercosul, que recomenda aos países-membros adoção de tarifas regulatórias sobre conteúdos digitais estrangeiros, com vistas à proteção da soberania cultural. Trata-se de uma oportunidade para articular a reciprocidade tarifária com uma agenda regional de defesa dos direitos culturais.
No caso das patentes americanas, isso pode significar a criação de uma tributação específica sobre o uso, licenciamento ou transferência de tecnologias protegidas por patentes oriundas de empresas ou titulares dos EUA. Conforme o artigo 4º da Lei nº 15.122/2025, o Brasil pode adotar restrições comerciais ou fiscais a bens e serviços provenientes de países que desrespeitem princípios da OMC ou que pratiquem medidas discriminatórias contra o país.
Como as patentes são protegidas por tratados multilaterais, como o Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), a reação brasileira deve respeitar os limites internacionais, mas pode se ancorar no artigo 8º do TRIPS, que permite a adoção de medidas para proteger o interesse público, inclusive em contextos de práticas injustas.
Do ponto de vista técnico, a incidência sobre patentes pode ocorrer via aumento da alíquota de royalties pagos a titulares estrangeiros ou por meio de restrições administrativas ao reconhecimento ou à extensão de patentes registradas por empresas dos EUA, desde que justificadas como medidas de salvaguarda.
O Brasil também poderia, conforme o artigo 68 da Lei nº 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial), declarar o interesse público sobre determinadas tecnologias e conceder licenças compulsórias, especialmente em setores estratégicos como o farmacêutico, de energia ou de agropecuária, desde que demonstrado que os EUA adotaram medidas comerciais que afetam de forma direta e desproporcional os interesses nacionais. Com isso, a reciprocidade deixa de ser apenas um mecanismo punitivo e passa a operar como instrumento de proteção soberana, equilíbrio concorrencial e defesa dos direitos culturais e tecnológicos do Brasil.
É justamente nesse ponto que a aplicação da reciprocidade se mostra não apenas legítima, mas necessária. Ao direcionar medidas corretivas para produtos de propriedade intelectual — como patentes, licenças de uso, serviços de software e conteúdos digitais — o Brasil evita retaliações indiscriminadas e atua de forma cirúrgica sobre a fonte do desequilíbrio. A adoção de medidas de reciprocidade exige racionalidade estratégica.
Taxar produtos culturais e tecnológicos com origem nos EUA, como plataformas de streaming, aplicativos de redes sociais e serviços de armazenamento em nuvem, é não apenas viável juridicamente, mas socialmente justo. Essas empresas utilizam a infraestrutura brasileira, captam dados dos cidadãos, geram lucros e pagam relativamente pouco ao Estado nacional. A aplicação de medidas compensatórias sobre esses bens pode corrigir distorções históricas de subtributação no setor.
A análise crítica da política de Trump sob a ótica dos direitos culturais permite repensar a política externa brasileira com base em valores constitucionais. A dignidade da pessoa humana, como valor central do ordenamento jurídico, impõe ao Estado brasileiro o dever de proteger os meios pelos quais a cultura é produzida, difundida e acessada pela população.
Em tempos de disputas ideológicas travestidas de protecionismo, cabe ao Brasil erguer a bandeira do pluralismo, da liberdade e da justiça econômica. A Lei nº 15.122/2025 fornece o instrumento, cabendo ao Estado e à sociedade civil a construção do caminho. Em suma, a política tarifária de Trump exige uma resposta estratégica do Brasil.
Amparado na lei de reciprocidade e guiado pela proteção dos direitos culturais e da dignidade da pessoa humana, o país pode — e deve — utilizar a regulação da propriedade intelectual como ferramenta de justiça econômica, de soberania e de promoção da cidadania cultural.
Referências (formato ABNT):
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 maio 1996.
BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev. 1998.
BRASIL. Lei nº 15.122, de 11 de abril de 2025. Institui medidas de reciprocidade no âmbito comercial internacional. Diário Oficial do Estado do Ceará, Fortaleza, 12 abr. 2025.
BRASIL. Projeto de Lei nº 2.339, de 2022. Dispõe sobre a regulação dos serviços de vídeo sob demanda. Câmara dos Deputados, Brasília, 2022.
IPEA. Economia Criativa no Brasil: tendências e desafios. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2023.
NEWZOO. Global Games Market Report 2023. Amsterdam: Newzoo, 2023.
PWC BRASIL. Entertainment and Media Outlook 2023-2027. São Paulo: PricewaterhouseCoopers, 2023.
CONVENÇÃO SOBRE A PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE DAS EXPRESSÕES CULTURAIS. UNESCO, Paris, 2005.
GATT – GENERAL AGREEMENT ON TARIFFS AND TRADE. Artigo XXIII. Disponível em: https://www.wto.org
PARLAMENTO DO MERCOSUL. Resolução nº 43/2021. Recomendações sobre a regulação do conteúdo digital estrangeiro. Montevidéu, 2021.
PEC 45/2019 e PEC 110/2019. Propostas de Emenda Constitucional sobre a Reforma Tributária. Câmara dos Deputados e Senado Federal.
PL 2339/2022. Dispõe sobre a regulação dos serviços de vídeo sob demanda. Câmara dos Deputados.
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