top of page

Entre mecenatos e patrocínios, a versão aclamada da Lei Rouanet italiana

Atualizado: 8 de dez. de 2020



Fontana di Nettuno - Art Bonus


A figura de uma pessoa apoiadora das artes em geral, econômica e materialmente – um patrono generoso – nos remete originalmente à época do Império Romano, com Caio Mecenas (68–8 a.C.), conselheiro hábil e de confiança do Imperador Augusto (1), assim como, de maneira proverbial para a cultura italiana, aos patrocínios dos ilustres nobres das artes renascentistas, como as famílias Sforza de Milão, Della Rovere de Urbino e Medici de Florença.


O mecenato significou, assim, durante séculos, no mundo inteiro, mas principalmente na Europa, o principal sustento de grandes artistas, bem como foi o responsável pela realização de inúmeras obras na Itália, atualmente patrimônio da humanidade. Contudo, foi somente nos últimos anos que esse fenômeno adquiriu uma condição especial no sistema jurídico italiano: a Lei Art Bonus (2), que instituiu uma forma de crédito fiscal a favor de quem investe em atos de conservação e valorização do patrimônio cultural italiano.


Embora a atividade de proteção e valorização do patrimônio cultural, nos termos do Código do Patrimônio Cultural e da Paisagem (3) e da Constituição italiana (4), seja de responsabilidade do Estado italiano, a insuficiência de recursos públicos para esses fins é notória. Basta mencionarmos que se trata do país com maior lista de sítios que integram a lista de Patrimônio Mundial da Unesco, mas que ocupa umas das últimas posições no ranking europeu de gastos realizados pelos governos para a cultura (5).


A busca de financiamento privado para o setor tornou-se, assim uma necessidade cada vez mais indispensável para o governo italiano. Nesse sentido está a Lei Art Bonus, que é uma iniciativa similar à Lei Rouanet brasileira, visando o incentivo e o aumento das doações privadas a favor da cultura e do entretenimento, em troca de crédito tributário.


Precedeu-a o Decreto-Lei 83, de 31 de maio de 2014, visando a “disposições urgentes para a proteção do patrimônio cultural, o desenvolvimento da cultura e a revitalização do turismo” que, posteriormente, foi convertido na Lei nº. 106, de 29 de julho de 2014 (Lei Art Bonus). O objetivo dessa Lei foi o de simplificar os mecanismos de financiamento e apoio aos bens culturais, com rastreabilidade do desembolso e documentação de despesas, prevendo que o doador tenha direito a crédito tributário igual a 65% do valor pago (6).



Archivio Storico della Città di Torino - Art Bonus


Apesar de o sistema de mecenato criado por meio da Lei Rouanet ser tão criticado no Brasil e, desde 2014, notar-se uma perda substancial na captação de valores (7), o governo italiano aclama pelo sucesso crescente da Lei Art Bonus. Não somente equipamentos culturais famosos, como o Museu Egípcio de Torino, cuja restauração foi totalmente financiada pela Art Bonus, mas também diversas igrejas e edifícios severamente danificados por terremotos no centro da Itália foram renovados valendo-se dos recursos oriundos dessa Lei.


Recentemente, a responsável pelo departamento no Mibact italiano (Ministério dos bens, atividades culturais e turismo) revela que, desde o início de vigência da lei, em 2014, os donativos subsidiados atingiram o montante de 500 milhões de euros, recursos disponibilizados “por um exército que conta atualmente com 16.800 mecenas, para 4.025 intervenções” e que, somente nos meses sombrios do lockdown deste ano, tiveram o “resultado de mais de 70 milhões de euros captados” (8).



Teatro dell'Opera di Roma - Art Bonus


Uma coisa é certa: as atividades de recuperação, proteção e valorização do patrimônio cultural são extremamente custosas. A Europa busca, assim, mais envolvimento de toda a sociedade nessa empreitada, incluindo até recursos privados de pessoas físicas, razão pela qual as medidas de incentivos fiscais continuam sendo o principal instrumento de incentivo à concretização desse fim, a despeito das polêmicas que suscitam.


Anita Mattes

Advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, Cultore della materia na Università Bicocca em Milão, doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbonne, pesquisadora do Centre d’Étude et de Recherche en Droit de l’Immatériel (CERDI/Saclay) e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais.

E-mail: amattes@studiomattes.com.br


1 COSTA, S. Mecenate. Frammenti e testimonianze latine. Milano: Ed. La vita felice, 2014.

2 Lei nº 106 de 29 de julho de 2014.

3 Decreto Legislativo n° 42 de 22/01/ 2004 (Codice dei beni culturali e del paesaggio), Artigo 30, 1: Lo Stato, le

regioni, gli altri enti pubblici territoriali nonche' ogni altro ente ed istituto pubblico hanno l'obbligo di garantire

la sicurezza e la conservazione dei beni culturali di loro appartenenza.

4 Artigo 9° da Constituição da República Italiana: La Repubblica promuove lo sviluppo della cultura e la ricerca

scientifica e tecnica. Tutela il paesaggio e il patrimonio storico e artistico della Nazione.

5 Dados de 2018 e últimos disponíveis pela Eurostat. Documento disponível no site: ec.europa.eu/eurostat.

6 Esse crédito será pago em três anos consecutivos a pessoas físicas e determinadas pessoas jurídicas até o limite

de 15% da receita dos rendimentos tributáveis. Para explicação mais detalhada, vide Cos’è Art bonus. Misure

urgenti per favorire il mecenatismo culturale. Documento disponível no site: artbonus.gov.it.

7 Especialmente no primeiro semestre de 2020, houve uma queda de 35% comparativamente ao primeiro

semestre do ano passado, sendo que alguns estados nem sequer conseguiram obter recursos do incentivo, como

Alagoas, Amapá, Roraima e Tocantins. Documento disponível no site: leideincentivoacultura.cultura.gov.br.

8 LAMBERTUCCI, S. Il Covid non ferma l’Art Bonus, la raccolta cresce. Outubro/2020. Documento disponível

no site: ansa.cultura.it.

127 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page