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Direitos Culturais: Tendências legislativas no Brasil


Esta foto de Autor Desconhecido está licenciado em cc by-sa

Apresentar as tendências legislativas de qualquer país, a partir da modernidade, é algo muito arriscado em termos de precisão, pois desde esta era abandonou-se o respeito às leis ancestrais, imemoriais às vezes, pela prevalência da lei mais recente. A mais recente, enfatize-se, que não é necessariamente a mais nova, significando que a lei por último vigente pode ser apenas uma retomada de coisa antiga, às vezes bem antiga.


No que concerne ao Brasil, um país gigantesco, que ocupa praticamente a metade do território da América do Sul, com uma população que supera os 50% da que habita este continente, possuidor de quatro fusos horários, cujo número de Estados-membros equivale ao dobro do número de países da Região, composto por 5.570 municípios autônomos, há uma potencialidade de as tendências normativas serem ainda mais difusas.


Porém, constitucionalmente, há guias de unidade, sendo a principal delas, para o campo cultural, as da competência legislativa concorrente, segundo a qual o poder federal faz as normas gerais, e as da competência administrativa comum, em que os entes políticos estabelecem pactos operacionais ou a lei determina suas atribuições, ou seja, seus sistemas de compartilhamentos de políticas.


Agrava ainda mais a dificuldade para detectar as tendências legislativas, o fato de o Direito Constitucional ser muito suscetível à força da política ou, como diria Ferdinand Lassalle, aos fatores reais do poder, fenômeno que desafia a literalidade dos textos constitucionais, determinando que, não raro, o direito efetivamente vigente, seja o oposto daquele que pode ser lido por qualquer pessoa alfabetizada.


Assim, detectar tendências neste campo normativo e nesse contexto tão complexo exige recortes temporais curtos, sob pena de ampliar as zonas de penumbra das partes que não se consegue observar. O recorte mais frequentemente utilizado no Brasil é o da Constituição de 1988, que não cabe aqui, por já superar três décadas; nem mesmo o da Carta Ibero-americana, que vai para além de três lustros.


Elege-se, portanto, o mais conhecido de todos, o recorte da pandemia e, nele, dois fenômenos curiosos e inesperados: a prorrogação do Plano Nacional de Cultura, mais por suas ineficiências que por suas qualidades, e o surgimento do parlamentarismo cultural, consistente no fato de que o Congresso Nacional brasileiro se tornou o protagonista para as soluções pecuniárias para o referido setor.


Sobre o Plano Nacional de Cultura, acalentado como uma das bases de estabilização das políticas culturais, foi aprovado em 2010, para ter vigência decenal. Sob a égide de tal plano, o Ministério da Cultura, ao invés de se fortalecer, foi extinto e até mesmo vilipendiado. Curioso é que ao invés de, em 2020, o governo dar por definitivamente extinto o Plano, o prorrogou por mais dois anos, o que gerou não somente espanto, mas a necessidade de saber-se as razões.


Estudo feito por este signatário revelou que o PNC do Brasil mais se assemelha a um manifesto que propriamente a um peça operacional, pois das suas 53 metas, 12 são instrumentais, que servem para a criação de órgãos; 10 são programáticas, significando que não são autoaplicáveis; 23 são transculturais, caracterizadas por confiar a execução de metas a outros órgãos e pessoas, portanto, diferentes do Ministério da Cultura; quatro são imprecisas, por oferecerem dificuldade de compreensão ou conterem erro de premissa; e apenas quatro são assertivas, ou seja, finalísticas e autoexecutáveis. Certamente essas características, notoriamente deficientes, tornaram o Plano atraente para um governo que não esconde seu antagonismo por significativa parcela do setor cultural.


Por outro lado, a pandemia gerou um movimento surpreendente, que dotou o país, como dito, de uma espécie de parlamentarismo cultural nesta seara, porque, mesmo sendo o Brasil um país arraigadamente presidencialista, ao ponto de Ernest Hambloch ter escrito um livro intitulado “Sua Majestade, o Presidente do Brasil”, além de esta forma de governo já ter sido confirmada por dois plebiscitos, o Poder Legislativo impôs, a contragosto dos gestores centrais, uma legislação – conhecida como Lei Aldir Blanc - que levou R$ 3 bilhões (aproximadamente, US$ 600 milhões) aos Estados e Municípios, para o desenvolvimento de políticas emergenciais, durante a pandemia.


A boa notícia é a tendência de que essas legislações podem se projetar para além da excepcionalidade pandêmica, uma vez já terem sido aprovadas no âmbito parlamentar (falta a aprovação presidencial) duas legislações semelhantes: a Lei Aldir Blanc 2, para ter vigência por cinco anos; e a Lei Paulo Gustavo, preponderantemente destinada às atividades audiovisuais, cuja regência das políticas culturais nelas previstas é descentralizada.


Havendo aprovação definitiva desta legislação, em grande parte o Brasil superará a proverbial falta de recursos públicos para a cultura, ao ponto de ter a potencialidade de abalar a lógica da trintenária e muito conhecida Lei Rouanet, sempre acusada de centralismos e favorecimento dos mais ricos, ao menos quando se trata do seu mecenato.


Essas são, portanto, as mais evidentes e eloquentes tendência legislativas do Brasil contemporâneo para o campo cultural, sendo que, para que caminhem bem, o país deve buscar superar uma falta de sintonia de em um dado momento ter um plano sem recursos, e, em outro, precisamente agora, ter recursos sem um plano bem estruturado e factível.

* Este texto serviu de base para conferência homônima proferida, pelo autor, em 30/03/2022, nas Jornadas Preparatórias ao II Congresso Ibero-Americano de Direito da Cultura, promovidas pela Fundação Gabeiras (Espanha).

Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP)

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