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Direito à felicidade enquanto Direito Cultural multidimensional




“Quem quer ser feliz?” Essa pergunta invariavelmente é respondida de modo afirmativo por quantos são indagados pela felicidade, como um desejo inerente a cada ser humano.


Geralmente, quando se fala em direito à felicidade, para muitos, há uma concepção pré-estabelecida de que a felicidade é algo tão particular que depende da visão de mundo e da percepção da vida de cada ser humano. Isso para não citar a diversidade de modos de alcançá-la. Nessa perspectiva, seria difícil conceber que o direito pudesse valorizar a felicidade de modo a emoldurá-la normativamente.


Todavia, por se tratar de uma forma de vida e um valor tão amplamente abordado por todos, o Direito não poderia deixar de analisá-la, compreendê-la e propor uma forma de regular as condutas humanas para que a dimensão individual da felicidade não se opusesse à coletiva.

A reflexão que aqui se propõe objetiva analisar, mesmo de forma extremamente sintética, o reconhecimento do direito à felicidade (ou busca da felicidade) como um direito fundamental da espécie dos direitos culturais, que perpassa a simples categorização em apenas uma das gerações (ou dimensões) de direitos humanos (e fundamentais), sendo alçada a multidimensionalidade, própria dos direitos que são reconhecidos em diversos momentos históricos.


Considerando-se as importantes Declarações estadunidenses de 1776 – a Declaração de Direitos da Virgínia [1] e a Declaração da Independência – ambas atestam a autoevidência de certos direitos inatos e inalienáveis, com fundamento na liberdade e na igualdade de todos, entre eles, o “de buscar e obter a felicidade”.


Segundo Fábio Konder Comparato, a busca da felicidade, referida em ambas as Declarações, “é a razão de ser desses direitos inerentes à própria condição humana. Uma razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações. Uma razão universal, como a própria pessoa humana” [2]. Desse modo, tem-se que a busca da felicidade é um valor legítimo que identifica todos os seres humanos e o princípio norteador de suas relações pessoais e sociais ao longo da existência terrena.


Vai além de um valor meramente religioso, uma vez que é inerente à condição humana na temporalidade; e também além de um princípio jurídico que regula as relações humanas, quer interpessoais quer sociais quer institucionais, enquanto essencial ao pleno desenvolvimento humano.


Tanto Sócrates quanto Platão entendem a felicidade como uma prática que tem como fundamento a reflexão sobre as condutas, ao priorizar o pensamento e a disciplina, despregando-se da ideia de que ela se confundiria com a satisfação de quaisquer prazeres e desejos.


Para Aristóteles, a felicidade é o bem supremo e tem fundamento na prática das virtudes, considerando ainda a necessidade de meios exteriores para a sua realização, inclusive o poder político. Nessa perspectiva, a virtude pode ser concebida como uma vida ética que não pode ser alcançada plenamente fora do contexto interrelacional e social; cabendo, aqui, a ideia da busca da felicidade coletiva, na qual direitos e bens fundamentais ao bem-estar da coletividade podem (devem) ser usufruídos por todos em igual consideração.


Daí a importante percepção de John Stuart Mill de que a felicidade individual deve estar em harmonia com o bem comum - a felicidade coletiva - ressaltando a relevância da educação para a construção deste sentimento como um hábito que usualmente anime os indivíduos à igual consideração pela felicidade de todos.


Nessa perspectiva, afirma Mill [3] que: “as leis e estruturas sociais coloquem tanto quanto possível a felicidade ou (como se lhe pode chamar para fala: em termos práticos) o interesse de qualquer indivíduo em harmonia com o todo, e, em segundo lugar, que a educação e a opinião, que têm um poder tão grande sobre o carácter humano, usem esse poder para estabelecer na mente do indivíduo uma associação indissolúvel entre a sua própria felicidade e o bem comum”.


No plano normativo internacional, a ONU, por meio da Resolução 65/319, de 2011, reconheceu a felicidade como “um objetivo humano fundamental”, enquanto “um objetivo e aspiração universal”, conclamando seus Estados Membros a se empenharem na concretização desta finalidade por meio de políticas públicas.


E não sem razão, no Brasil, apesar de não expressa na Constituição como direito fundamental, a busca da felicidade foi alvo de duas Propostas de Emenda Constitucional, considerada entre o rol dos direitos sociais, a PEC 19/2010 e a 531/2010, ambas arquivadas em 2015.


Nesse contexto de reconhecimento do direito à busca da felicidade, tanto no plano internacional quanto nacional, respectivamente, como direito humano e direito fundamental, tem-se uma outra reflexão acerca da classificação clássica geracional de direitos, se de primeira, segunda ou terceira dimensão (geração).


Tal reflexão tem razão de ser tanto do ponto de vista de compreensão do direito em si (sua natureza e aplicabilidade) quanto dos deveres estatais exigíveis para sua concretização, considerando-se o direito à felicidade, assim como a dignidade da pessoa humana, em sua dimensão individual e coletiva.


Inicialmente, percebe-se claramente a multidimensionalidade do direito à busca da felicidade por sua presença entre os direitos de liberdade (1ª dimensão), os de igualdade (2ª dimensão) e os de fraternidade (3ª dimensão – transindividuais).


Assim, o direito à busca da felicidade surge no contexto das revoluções liberais, com sua ênfase nos direitos individuais, exigindo do Estado deveres negativos com ênfase maior na liberdade de autonomia das pessoas para alcançar a felicidade por meio de seus projetos pessoais.


Além disso, perpassa os movimentos de concepção do Estado Social, cujas exigências maiores têm como foco os direitos sociais (econômicos e culturais) que ensejam a concretização de bens materiais e imateriais fundamentais para garantir a dignidade da pessoa humana; e, no que se refere à terceira dimensão de direitos, ao Estado Democrático de Direito cabe o dever constitucional de alcançar a justiça social e o bem-estar para todos, enquanto fundamentos da tutela coletiva dos direitos fundamentais, próprios de uma solidariedade intergeracional.


Nesse contexto, é possível perceber a presença expressa e implícita do direito à busca da felicidade ao longo da história moderna e contemporânea dos direitos humanos e fundamentais, podendo considerá-lo, assim como o direito ao desenvolvimento, um direito integrador dos demais. Dessa forma, tanto a felicidade quanto o desenvolvimento podem superar os limites das percepções particulares para serem inseridos na objetivação da vida, despertando reflexões jurídico-políticas importantes para a realização das promessas da modernidade – liberdade, igualdade e fraternidade.


E por qual razão, finalmente, afirmamos que o direito à busca da felicidade é um direito fundamental da espécie dos direitos culturais?


A dimensão cultural da felicidade não implica na homogeneização de concepções e meios para alcançar esta última. Da mesmo forma que os direitos culturais se expressam na diversidade de manifestações, o direito à busca da felicidade permeia a diversidade de expressões culturais para construir uma interdependência existencial humana de tal modo que os seres humanos possam encontrar em tal direito uma percepção do outro em si mesmos, na pluralidade de planos de vida prenhes de se materializar.


Patrice Meyer-Bisch [4] afirma que os direitos culturais “podem ser definidos como ‘capacidades de capacidades’; e que a identificação é um ato de autoreconhecimento e heteroreconhecimento de suas próprias capacidades, fomentando o “florescimento pessoal e a vinculação a um outro”.


E é a partir deste florescimento individual e coletivo, em diferentes contextos de vida, em igual consideração e respeito, animados pelo espírito de fraternidade intergeracional, que o direito à busca da felicidade se propõe a materializar na concretude da existência humana, as oportunidades para o desenvolvimento humano integral.


Marcus Pinto Aguiar, Mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), Advogado. Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil. Professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do IBDCult

Notas


[1] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (EUA). Declaração de Direitos de Virgínia. Proclamada em 16 de junho de 1776. Disponível em: <https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/ilp/anexos/1788/YY2014MM11DD18HH14MM7SS42-Declara__o%20da%20Virginia.pdf>. Acesso em: 19.05.2023.


[2] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Editora Saraiva, 7 ed rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p.62.


[3] MILL, John Stuart. Utilitarismo. Porto (Portugal): Porto Editora, 2005, p.58.


[4] MEYER-BISCH, Patrice. A centralidade dos direitos culturais, pontos de contato entre diversidade e direitos humanos. In: Revista Observatório Itaú Cultural/OIC. Direitos culturais: um novo papel. OIC n.11 (jan/abr.2011). São Paulo: Itaú Cultural, 2011, p.27-42.

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