Democratizando o Patrimônio Cultural Imaterial
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Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP), cuja 3ª edição foi recém-publicada
As duas definições mais conhecidas de democracia foram proferidas em discursos fúnebres. Uma por Péricles (430 a. C.), o fundador do “governo de muitos” em Atenas, e a outra, por Abrahão Lincoln (1863), o presidente dos Estados Unidos que lutou contra a escravidão e pela manutenção da unidade territorial do seu país.
As palavras de Péricles, intermediadas por Tucídides, foram proferidas ao final do primeiro ano da Guerra do Peloponeso. Nelas, não há uma definição direta para a democracia, todavia, pelos valores aos quais ele faz referência, é lícito inferir que a entendia como o governo da liberdade, em ambiente de igualdade, para fins comuns. Belíssimo, não fosse o fato de que, mesmo na faixa etária dos adultos, mulheres, comerciantes, estrangeiros e escravizados não eram integrados à democracia ateniense.
Mais de dois milênios depois, também lamentando mortos de um conflito fratricida, a Guerra de Secessão, Abrahão Lincoln, em campo santo situado em Gettysburg (Pensilvânia), concluiu sua oração definindo a democracia como o governo do povo, pelo povo, para o povo, esperançoso de que tal fórmula jamais não desaparecerá da face da Terra. Malgrado, o entendimento de povo persistia com quase o mesmo conjunto de exclusões do Século de Péricles.
Apesar das observações, não há erros nas definições de Péricles e Lincoln, sendo o principal problema por elas enfrentado a compreensão muito restrita do reconhecimento de quem pode ter cidadania plena, apto a ser tratado com igualdade, bem como de usufruir de liberdade, além do que, os atos decisórios devem emanar, ser conduzidos e beneficiar quem integra o conjunto da população designado como povo.
Estas evocações aos percursos da democracia são transversais a todos os segmentos das relações coletivas, tendo chegado, agora, ao âmbito do reconhecimento do patrimônio cultural imaterial, o que levanta muitos questionamentos tanto sobre os elementos que o integram, quanto sobre a atuação dos Estados nos processos de reconhecimento.
A preocupação compartilhada remete a uma análise crítica das legislações e das práticas administrativas, tanto em nível internacional quanto nos âmbitos nacional e subnacional, o que, no caso do Brasil, significa refletir sobre as normas da União, dos Estados e Municípios.
Sabendo que relativamente ao patrimônio cultural vige, na federação brasileira, a competência concorrente, cabendo à União editar as normas gerais, é imperioso refletir sobre o Decreto nº 3.551/2000, o que “Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências”.
No referido Decreto, as palavras democracia, liberdade, igualdade e povo não aparecem, restando saber se o reconhecimento dos elementos culturais vem de proposta popular, é feito neste nível e se destina à cidadania.
Não há dificuldade em dizer que as propostas de Registro não emanam “do povo”, nem das comunidades que lhes representariam um microcosmo, o que se afirma com base no Art. 2o, no qual estão especificadas as “partes legítimas para provocar a instauração do processo de registro”, preponderantemente estatais e formais, precisamente: o Ministro de Estado da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; e sociedades ou associações civis. Não há espaço para as comunidades informais, nesse sistema.
Também a deliberação sobre os bens que integrarão as listas ou livros de Registro não é adotada “pelo povo”, não obstante haja espaço para consultas e manifestações. Todavia, conforme o Art. 4o, “o processo de registro, já instruído com as eventuais manifestações apresentadas, será levado à decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural”, um órgão composto por dez servidores ocupantes de cargos de confiança, cinco representantes de associações culturais, e por “quinze representantes da sociedade civil com reconhecido conhecimento nas áreas de atuação finalística do IPHAN”, os quais, porém, são “indicados pelo Presidente do IPHAN e designados pelo Ministro de Estado da Cultura” (ver Decreto nº 11.670/2023).
Saber se o Registro do PCI brasileiro é feito “para o povo”, remete à leitura do Art. 6º do Decreto de regência do tema, segundo o qual cabe ao Ministério da Cultura assegurar ao bem registrado a “documentação por todos os meios técnicos admitidos”, bem como dar-lhe “ampla divulgação e promoção”, atos com potencial de fazer o bem chegar ao conjunto da população, porém, considerando os problemas nas fases de indicação e deliberação, com o potencial de ser percebido preferencialmente como um produto do que como parte de um processo de partilhas culturais.
Vê-se, assim, que a simples evocação da ideia de democratizar o PCI, aliada à lembrança dos valores do governo popular, nos faz refletir sobre as práticas que até aqui temos desenvolvido a esse respeito, sendo este um excelente caminho para sabermos se devemos manter ou aprimorar nossas legislações, práticas e políticas sobre a matéria, bem como o de investigar se a relação proposta do PCI com a democracia tem algo de peculiar que deve ser descoberto ou trazido à tona dos interessados.
(Texto-base para palestra no encontro de Cátedras UNESCO, em dezembro de 2025, em Nova Deli – Índia)




