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Cultura, signo de fogo

Esta foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY (Quadro de Chico da Silva)


Na mitologia grega, a figura mais frequentemente associada à Cultura é Prometeu, um titã que, para viabilizar a existência dos humanos – seres por ele criados -, roubou o fogo dos deuses, entregando-o aos mortais que, a partir de então, passaram a ter a ousadia de tentar coisas até então exclusivas das divindades. Por isso, tanto o irmão de Atlas e Epimeteu, como a própria humanidade, receberam punições perpétuas; ele sendo acorrentado a uma pedra (onde diariamente tem o fígado dilacerado por um abutre, mas o órgão é recomposto à noite, pelo sono); ela imantada de dúvidas sobre que é o certo e o errado.


Não são poucos os culturólogos que associam o aludido mito grego com certa passagem da angelologia do Oriente Médio, precisamente a que se refere à queda de Lúcifer, o anjo originariamente responsável pela luz, ou seja, pelo fogo divino, cuja proximidade com o elemento ardente o fez cair na tentação de também querer ser criador. Por isso, como esperado, foi punido com o degredo para os infernos, onde passou a recepcionar, com chamas incessantes e um afiado tridente, aqueles que contrariam a vontade e a exclusividade do poder de Deus.


Essas passagens levam à inferência de que as práticas culturais carregam sempre a potencialidade de reivindicar a inclusão para mais gente, de variar as relações, de propor coisas novas, as quais frequentemente desagradam os poderosos. E quanto ao fogo, ele sempre aparece, seja para determinar começos ou como tentativa de pôr um fim aos atrevimentos.


A ferro e fogo são tratadas as divergências da cultura, com incêndios de cidades liberais, cujo álibi, para justificar os massacres, joga sobre elas a alcunha de libertinas; com queima de mulheres e homens que ingressam na ciência ou na política, desta feita chamando-os de bruxas, hereges ou traidores; com piras de livros, bibliotecas, cinematecas, igrejas, estátuas, instrumentos musicais e museus, sob os argumentos da subversão ou da revolução cultural.


Aparenta que todos os que querem se livrar de certo vestígio cultural considerado incômodo, pensam como primeira opção fazer uso do fogo, sob a ilusão de que as chamas põem um fim definitivo àquilo que os desagrada ou que os impede de vivenciar o poder de forma plena e sem contrastes.


Ledo engano! Ou seria um crasso engano?! Porque se o fogo não é o signo da cultura, é ao menos seu a(s)cendente mais forte, e frente a ela costuma funcionar como adubo, tal qual ocorre com a carnaúba, se quisermos uma imagem ao mesmo tempo realista e regionalista.

Porém, para guardar coerência com a estrutura inicial do texto, retomando as referências mitológicas, observa-se que a cultura, em suas múltiplas manifestações, é semelhante a um certo e inquieto pássaro de penas multicoloridas, que apenas a cada meio milênio pousa em seu ninho, com a finalidade de pensar sobre si próprio, e contrabalançar as ideias de continuidade e renovação, em face das quais se incendeia espontaneamente, objetivando se renovar a partir das próprias cinzas.


Parece, portanto, ser uma grande tolice olvidar o diálogo e a reflexão e querer extinguir pelo fogo a fênix indestrutível que chamamos de cultura.

Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP)

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