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Cultura alimentar, identidade e resistência


Baianas de acarajé: um ofício que resiste ao tempo

A cultura alimentar e a gastronomia estão entre os objetos das políticas culturais no Brasil. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) já registrou como bens culturais imateriais: o ofício das baianas de acarajé, a produção tradicional de cajuína no Piauí, o modo de fazer o queijo artesanal de Minas e o sistema agrícola tradicional do Rio Negro-AM (1). Vale destacar que o primeiro registro ligado à cultura alimentar foi do ofício das Paneleiras de Goiabeiras, em 2002.


Além da aplicação de instrumentos de reconhecimento e salvaguarda em nível nacional, há exemplos internacionais como o da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) que reconhece, a partir da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, saberes e fazeres relacionadas às práticas alimentares, tais como a dieta mediterrânea, da gastronomia tradicional mexicana e a comida tradicional dos franceses, entre outras. Torna-se relevante frisar os movimentos midiáticos que elevam as gastronomias, suas técnicas e ingredientes a espetáculos audiovisuais de grandes audiências e acabam por valorizá-las economicamente, na medida em que uniformizam os gostos e/ou suscitam o desejo de consumo como meio de distinção social.


Para Jesús Contreras, Cultura Alimentar é "o conjunto de representações, crenças, conhecimentos e práticas herdadas e/ou aprendidas que estão associadas à alimentação e são compartilhados pelos indivíduos de uma determinada cultura ou grupo social"(2). Isso posto, é possível observar que esse cenário global de reconhecimento identitário e econômico tem propiciado a ampliação das possibilidades de atuação profissional não só na figura dos chefs de cozinha, mas em toda a cadeia produtiva que o circunda, propiciando a valorização dos diversos elos, permitindo pesquisas acadêmicas das mais diversas áreas e conduzindo as políticas públicas para um necessário compromisso de aporte de recursos, produção de legislações e práticas que regulamentem e sustentem com o devido valor para a tradição e a inovação, sem que o mercado se sobreponha às culturas tradicionais, mas conviva em harmonia.


No estado do Ceará, a Lei n° 17.608, de 06 de agosto de 2021 estabelece a Política Estadual da Gastronomia e da Cultura Alimentar e cria o Programa Ceará Gastronomia. A política instituída por essa estrutura normativa tem um viés intersetorial contando com as pastas da Cultura, Educação, Desenvolvimento Agrário, Turismo e Meio Ambiente.


Ao ser constituída, essa política traz entre os seus compromissos “salvaguardar o Patrimônio Gastronômico do Estado do Ceará em toda a sua diversidade e origem, bem como os modos de fazer e os saberes relacionados à cultura alimentar”, no intuito de garantir a preservação das tradições locais, elencando grupos como indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, entre outros (3).


Texto que muito se aproxima do princípio da pluralidade cultural, albergando a todos sem distinção. Desta forma, oferece continuidade, reafirmando a importância de um círculo virtuoso que começa com o inventário dos saberes alimentares do projeto Comida Ceará do Memorial da Cultura Cearense do Instituto Dragão do Mar (IDM)/Secretaria de Cultura do Ceará (Secult), passa pela criação do curso de Gastronomia da Universidade Federal do Ceará (UFC), acontece também pela criação do eixo de gastronomia em projetos sociais como o Jardim de Gente do Centro Cultural Bom Jardim (IDM/Secult), firmando-se com o inovador programa de formação e pesquisa da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco (IDM/Secult), sendo coroada com a fundação do primeiro mestrado em Gastronomia do Brasil (UFC), fortalecendo-se com a recente inauguração da Escola de Gastronomia e Hotelaria do Ceará (SENAC/Fecomércio).


Em outras palavras, mesmo diante de fenômenos de caráter econômico, que visam o lucro através da uniformização dos gostos alimentares, em detrimento das memórias gustativas, da saúde e da preservação do meio ambiente, as sociedades através de suas instituições e políticas resistem, fortalecendo as suas identidades, reafirmando aquilo que as distingue e qualificando seus discursos e práticas de transmissão de conhecimentos.


O IPHAN, a Unesco, a Lei da Gastronomia do Ceará e as diversas formas de construção de conhecimento vinculadas a questões da alimentação podem ser uma força coesa de resistência na medida que valorizem nossas identidades.


José Olímpio Ferreira Neto - Advogado. Professor. Mestre em Ensino e Formação Docente. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR). Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: jolimpiofneto@gmail.com.


Anderson de Oliveira Firmino - Especialista em Estética e Cosmetologia. Instrutor do Serviço Nacional de Aprendizado – SENAC CE. Graduando em Pedagogia e em Licenciatura em Química. E-mail: onimrif@hotmail.com.


Lina Luz Cavalcante - Técnica em Gastronomia. Graduada em História. Especialista em Gestão Cultural. Mestra em Sociologia, tendo pesquisado sobre Políticas de cultura e patrimonialização com foco no registro do ofício das Baianas de Acarajé. Conselheira do CONSEA- CE. E-mail: linaluz0610@gmail.com.


1 SANTILLI, Juliana. O Reconhecimento de comidas, saberes e práticas alimentares como Patrimônio Cultural Imaterial. Demetra. v.10, n. 3, 2015.


2 CONTRERAS, Jesús; GRACIA, Mabel. Alimentação, sociedade e cultura. Tradução de Mayra Foncesa e Barbara Atie Guidalli. Rio de Janeiro: Editora Fio Cruz, 2011.


3 CEARÁ. Lei n° 17.608, de 06 de agosto de 2021. Estabelece a Política Estadual da Gastronomia e da Cultura Alimentar e cria o Programa Ceará Gastronomia. D.O.E. 06.08.2021.

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