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Ceará: humorismo estrutural


Paulo Diógenes, humorista, ator, diretor e criador da Raimundinha


Aos olhos do Brasil, o Ceará é um celeiro de humoristas, imagem há muito consolidada pelos meios de comunicação de massa, a partir do momento em que passaram a projetar para todo o país a ironia multifacetada de Chico Anysio, a esperteza ingênua de Didi (o personagem único de Renato Aragão), as imitações de Tom Cavalcante, as paródias hilárias de Tiririca e tantos outros artistas, com variadas facetas, o que se estende aos dias atuais, tal qual se vê no projeto multimeios Cine Holliúdy, e certamente ocorrerá no futuro com nomes que somente o porvir nos permitirá conhecer.


Neste quadro, surge naturalmente o desejo de saber a razão em face da qual a terra da fictícia e dramática Iracema, a mãe de “Moacir” (mestiço cujo pai é o português Martins Soares Moreno), nome que significa “filho da dor”, não cessa de gestar e parir legiões de humoristas – não apenas comediantes – em distintos campos, como a literatura, a charge e a palhaçaria.


Dor e humor, aliás, são os elementos mais presentes nas explicações deste fenômeno; segundo a mais corrente delas, o cearense, habitante de um estado que, a despeito de ter galgado expressivas melhorias, ainda é detentor de gritantes desigualdades, usa intuitivamente as técnicas de evidenciar o absurdo da vida, a esperteza da pessoa frágil, o exagero caricatural do poderoso, como elementos de compensação à referida realidade de exclusão.


No mundo todo há humoristas, mas no caso do Ceará, não é arriscado dizer que os nomes projetados pela mídia formam a ponta do iceberg, pois em toda família, todo ambiente de trabalho, no sistema educacional, nas missas, nos parlamentos, no comércio, nos ambientes esportivos, nos meios de comunicação, entre outros, as pessoas componentes do povo que faz piada com o próprio formato do crânio (“cabeça chata” é quase um gentílico), se comunicam tentando adocicar ou amargurar o dia umas das outras, fazendo uso, sem saber, das técnicas que Terry Eagleton vê espalhadas mundo a fora: “ironia, [...] bathos, trocadilhos, jogos de palavras, ambiguidade, incongruidade, desvio, humor negro, mal-entendidos, iconoclastia, grotesco, fora do lugar, duplicação, absurdo, nonsense, tropeços, desfamiliarização, mudanças rápidas e hipérbole”.


Numa paráfrase de explícito oportunismo a uma expressão da moda, pode-se dizer que, no Ceará, temos um “humorismo estrutural”, por ser uma prática socialmente difusa e culturalmente identitária, que contempla todas as características de um patrimônio cultural imaterial, segundo a Constituição brasileira, pois nela estão elementos de referência à identidade, à ação e à memória do referido povo.


Esse perfil, não apenas artístico, mas cultural, permite inclusive que se cogite uma candidatura do humor cearense a patrimônio cultural imaterial da humanidade, considerando, por exemplos, os precedentes da “comunicação por assobios” verificados nas Ilhas Canárias e em certas regiões da Espanha e da Turquia, componentes da lista representativa da UNESCO. Reforçando; se lá usam silvos aqui é usado o humor como meio de interação social e de identidade cultural.


Uma candidatura como a ora cogitada tem antecedentes e deve ter consequentes. O ponto inicial é o entendimento e a valorização do fenômeno pela sociedade e pelo Estado. Ajudariam muito, em primeiro lugar, estudos acadêmicos, ora praticamente inexistentes.


Quanto ao poder público, espera-se dele políticas de salvaguarda e valorização, superando o acanhamento das quatro leis cearenses sobre o tema que, quase anedoticamente, sem especificar ações concretas, simplesmente definem a data de nascimento de Chico Anysio (12 de abril) como o dia do humor no estado; inserem um festival de humor num calendário estadual inexistente; dão o título permanente de capital do humor à cidade de Maranguape; e reservam ao Ceará a auto-intitulação de terra do humor.


Esse tipo de ação quase que puramente simbólico, também perpassa o Poder Executivo cearense, que no âmbito do patrimônio cultural imaterial nitidamente privilegia as ações de caráter individual, com o reconhecimento de mais de uma centena de tesouros vivos da cultura, nenhum dos quais, até agora, é identificado como um mestre do humor.


Também, a memória da manifestação, no Estado que se considera a sua terra, é quase insignificante e confiada praticamente a iniciativas particulares, como a do comediante Jader Soares, com o seu Museu do Humor Cearense. Por seu turno, o memorial dedicado a Chico Anysio, em sua cidade natal, a já mencionada Maranguape, considerada a pobreza do acervo, a timidez e a conservação do espaço, tem o potencial de inspirar nos visitantes o oposto daquilo que dele se esperaria.


Com esses referenciais, a ideia de uma candidatura do humor cearense a patrimônio cultural imaterial da humanidade quando menos serve para chamar a atenção para este grande valor cultural intrínseco à nossa gente e até agora subutilizado.


Com tal reconhecimento (ou para que a ele se chegue) insinuam-se possibilidades tão grandiloquentes quanto os seios, o cabelo e o batom da “Raimundinha” (personagem de Paulo Diógenes): poderíamos ou poderemos ter aqui um grande centro internacional de pesquisa do riso, um museu mundial do humor, uma Hollywood do cômico, uma Broadway da gargalhada, fazendo, ademais, a boa junção de identidade cultural com humor e economia criativa, pois, como certamente filosofaria Falcão, no âmbito cultural, “dinheiro não é tudo, mas é cem por cento”.

Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”.

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