Artigo publicado no Estadão
Pode-se imaginar que se nem os filósofos e etimólogos conseguem dizer com precisão o que é um artista, muito menos um jurista poderá fazê-lo. Isso é verdade se observarmos a questão apenas do ponto de vista substancial; todavia, em termos formais aquele que analisa as coisas sob o prisma do direito leva a vantagem de poder arbitrar limites e construir ficções.
Na busca de tal definição, contemporaneamente há uma tendência que seria bem representada pelo oito deitado (∞), de se dizer que artista é aquele que faz arte e que a arte é o produto da criação do artista, argumentação que lembra o joguete no qual os brincantes querem se livrar da bola, no caso, da obrigação de definir uma das duas coisas, pois se a brincadeira for pausada enquanto alguém a detém, esta pessoa terá que pagar uma prenda.
No Brasil, a norma que mais se aproxima de fornecer a definição almejada está na Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978; segundo ela, Artista é “o profissional que cria, interpreta ou executa obra de caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exibição ou divulgação pública, através de meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam espetáculos de diversão pública”.
É visível tratar-se de uma definição muito limitada porque está inserida numa lei que especificamente “dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artistas e de técnico em Espetáculos de Diversões”, ou seja, exclui potencialmente todas as demais artes e as práticas artísticas não profissionais.
Ademais, condiciona o reconhecimento do artista à comprovação de ele possuir certificado, diploma ou atestado expedidos pelos sistemas educacional ou sindical, consistindo tal exigência no principal motivo da arguição de inconstitucionalidade da referida lei, perante o Supremo Tribunal Federal (o julgamento ainda não ocorreu), por suposta agressão à liberdade de exercício dos trabalhos, ofícios e profissões que não exijam formação técnico-científica e não sejam potencialmente danosos aos seus destinatários.
Uma tentativa de universalização, em duplo sentido, para abranger todas as artes em todo o mundo, foi construída dois anos depois da lei brasileira acima mencionada, em uma prescrição do tipo soft law, precisamente a Recomendação sobre a Condição do Artista, elaborada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), realizada em Belgrado de 23 de setembro a 28 de outubro de 1980, em sua vigésima primeira sessão.
Segundo a referida Recomendação, “entende-se por ‘artista’ toda pessoa que cria ou por meio de expressão artística produz ou recria obras de arte, que considera a sua criação artística um elemento essencial de sua vida e assim contribui para o desenvolvimento da arte e da cultura, e que tem ou busca reconhecimento como artista, quer tal pessoa possua ou não um relacionamento de trabalho e esteja ou não vinculada a uma associação”.
Decodificar a definição proposta pela UNESCO leva a muitas observações, que podem se tornar mais evidentes se forem apresentadas em tópicos, como os que seguem:
- A Recomendação não consegue fugir do jogo cíclico que condiciona a definição de artista à de arte e vice-versa, mas não esclarece qualquer deles;
- Considera que o artista se caracteriza por distintos tipos de atos, sendo alguns personalíssimos (criar ou recriar obra de arte; considerar a criação essencial à sua vida; e buscar reconhecimento como artista) e outros intersubjetivos (contribuir para o desenvolvimento da arte e da cultura; e ser reconhecido como artista);
- A profissionalização e o associativismo são apenas possibilidades sobre as quais o artista tem o direito de decidir, o que em linguagem jurídica é chamado de direito subjetivo, caracterizado por ser exercível se e quando o seu titular quiser; todavia, em optando por eles, o artista deve poder usufruir de todos os direitos e se submeter a todos os deveres daí decorrentes, segundo o corpo da Recomendação;
- O locus da criação sequer é mencionando, o que leva à conclusão de que potencialmente pode ser qualquer um.
Portanto, constata-se mais uma vez que definir o sujeito desta reflexão é bem complicado, mas provavelmente não tão complicado quanto efetivamente artista, pois é algo que envolve simultaneamente batalhas largamente sociais, políticas, econômicas e outras profundamente intimistas, que nos lembram coisas como a teoria de Bauman ou o mais conhecido dos dilema hamletianos.
Nesses contextos de incerteza e liquidez, quem diria, apesar de todas as falhas e incompletudes, está no direito a possibilidade de se saber com certa segurança quem é o artista, ao menos nos recorte que ele propõe e até o próximo julgamento da questão.
Fortaleza, 9 de agosto de 2020.
Humberto Cunha Filho
Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”.
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