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A revitalização dos centros históricos italianos e a venda de casas a € 1


Um dos grandes desafios dos países europeus é a preservação do seu imenso patrimônio cultural, artístico e paisagístico. Apesar desse patrimônio representar um recurso econômico relevante para o turismo e para o território local, atualmente, a deterioração, a degradação e o abandono, principalmente do seu parque histórico-arquitetônico, são situações preocupantes.


A Itália, o maior museu a céu aberto da Europa, pela diversidade de vestígios de culturas antigas presentes em seu território, apesar de ter inserido a tutela da paisagem e do seu patrimônio histórico e artístico como princípio básico constitucional (1), possui uma quantidade considerável de casas e prédios de grande valor histórico e cultural em estado de total abandono ou degradação.


A beleza do patrimônio cultural arquitetônico dos pequenos borgos antigos italianos é ofuscada pela decadência e pelo uso não autorizado de suas casas, causando o empobrecimento do tecido produtivo, isolamento e despovoamento (cidades “fantasmas”).

Essa situação não se justifica somente pela escassez de fundos públicos, já que a Itália é o país europeu que menos destina recursos à cultura e à proteção e valorização do patrimônio arquitetônico (2), mas por uma quantidade relevante de fatores que torna tal proteção um verdadeiro desafio. Como exemplo, citamos a burocracia italiana (diversas autorizações e vínculos paisagísticos), a carga tributária que atinge essas propriedades e a crise econômica que vem atingindo o sul da Itália e as transações no mercado imobiliário nos últimos anos.


O governo italiano, contudo, não é totalmente desatento a essa situação. Há anos, vem promovendo políticas específicas de incentivos fiscais para o setor da construção civil. Diversos “bônus” (créditos fiscais) foram criados para que o proprietário consiga reformar seu imóvel. Os mais recentes foram o “Superbônus 110%”, introduzido no Decreto “Rilancio”/2020 e que visa a concessão de crédito fiscal a todo o tipo de reforma, desde que aumente a requalificação energética e antissísmica do edifício, e o “Bônus de Fachada”, concessão de crédito fiscal igual a 60% do valor do investimento gasto para a recuperação das fachadas de edifícios e condomínios em zonas especiais, entre elas as de interesse histórico, arquitetônico e ambiental.

Mas um movimento alternativo vem ganhando força nos últimos anos. Alguns municípios italianos estão promovendo uma iniciativa inovadora em busca da conservação, recuperação e requalificação do seu patrimônio histórico edificado, por meio de um instrumento um tanto polêmico: a venda de casas a € 1 !


A ideia é incentivar a regeneração de áreas urbanas históricas degradadas em suas características e peculiaridades originais e, ainda, estancar o fenômeno de despovoamento dessas regiões, mediante o estímulo à compra e reestruturação de imóveis, públicos e privados, situados nessas zonas críticas.


Não se trata de uma política pública oficial do Estado italiano, mas específica de alguns municípios. Assim, o programa é publicado em edital pela administração municipal e varia de acordo com orientação, interesses e regras próprias e específicas de cada município. Mas, em geral, o programa prevê que os proprietários desses imóveis concedam à municipalidade a possibilidade de venda de seu imóvel por um preço simbólico de € 1.


A administração municipal, por sua vez, garante a regularidade da venda, estipulando uma série de compromissos para o comprador, tais como: fornecer um projeto de reestruturação e reavaliação dentro de um prazo específico (geralmente um ano), pagamento de todas as taxas referentes ao registro, transferência e outras, a obtenção de todas as licenças necessárias para a regularização e reforma do imóvel e a garantia da correta execução das obras dentro de um prazo determinado.


Alguns exigem, ainda, o estabelecimento de residência fixa do comprador na cidade em que se situa o imóvel por um período mínimo determinado e o desenvolvimento de alguma atividade profissional. Muitos editais estabelecem a preferência explícita por famílias jovens, já que o objetivo da municipalidade é, também, reverter a tendência migratória que esvazia essas pequenas cidades.


Face às degradações econômicas, demográficas e sociais que essas cidades vêm sofrendo, é fundamental definir uma política que lhes permita buscar uma abordagem mais dinâmica de seus recursos como forma de propiciar uma forma de gestão mais eficiente. Tal iniciativa pode, assim, ser interessante para fins de valorização e revitalização de imóveis abandonados ou em ruínas nessas cidades históricas, além da possibilidade de criação de novas perspectivas econômicas, desenvolvimentistas e sociais, da reativação da economia local e do adensamento populacional dessas cidades, que sofrem com o processo de envelhecimento e com o despovoamento.


Fica claro, contudo, que o preço de € 1 é meramente simbólico, dado que, ao efetuar o negócio, o comprador de um imóvel nessas condições está, na verdade, obrigando-se a destinar uma quantia relevante à reforma do imóvel adquirido e a cumprir com uma série de outras obrigações, como as acima indicadas. Apesar de parecer que se trata de uma “oportunidade única” ou de um “negócio da China”, as condições para a viabilização desse programa são muito precárias. Normalmente, os imóveis disponibilizados estão em ruinas, situados em comunidades muito pequenas, de difícil acesso e longe dos grandes centros turísticos e habitacionais.


Por fim, é importante ressaltar que a necessária revitalização de velhos centros históricos não é uma realidade exclusivamente italiana ou europeia. No Brasil, inúmeras cidades têm os seus centros históricos despovoados, com população envelhecida e edifícios degradados, refletindo uma forma significativa de imobilidade econômica e social.

Apesar da realidade italiana ter características particulares e diferenciadas, a criação de novas estratégias dinâmicas de requalificação desses centros pode servir de inspiração como uma alternativa interessante para o desenvolvimento de uma nova perspectiva para velhos espaços urbanos.



*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e advogada do Studio MATTES

(1) Artigo 9° da Constituição Italiana: “La Repubblica promuove lo sviluppo e la ricerca scientifica e tecnica. Tutela il paesaggio e il patrimonio storico e artistico della Nazione”.

(2) Segundo relatório sobre Paisagem e Bens Culturais de 2020 do Instituto Nacional de Estatística da Itália (“Istat”), “Em 2018, a despesa pública atribuída pela Itália aos serviços culturais (que incluem a proteção e valorização do patrimônio) totalizou 5,1 bilhões de euros. Entre as outras grandes economias da União, França e Alemanha gastaram muito mais (14,8 e 13,5 bilhões, respectivamente)”, https://www.istat.it/it/files//2021/03/9.pdf.

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