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A liberdade artística e as forças apolínea e dionisíaca


Ambos os impulsos [apolíneo e dionisíaco], tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lança apenas aparentemente a ponte [...].


Nietzsche




O contínuo desenvolvimento da arte é associado por Nietzsche (1) às forças que emanam dos deuses Apolo e Dionísio. A ligação entre as forças apolínea e dionisíaca é tão intensa e necessária para a arte que é comparada à necessidade da dualidade dos sexos para a procriação, além de caracterizar-se por uma luta incessante entre eles marcada por periódicas reconciliações.

O sentimento provocado pela arte é, segundo Cassirer (2) “o processo dinâmico da própria vida: a oscilação contínua entre polos opostos, entre alegria e pesar, esperança e temor, exultação e desespero” que consiste no embate entre Apolo e Dionísio. Esses sentimentos são experimentados, tanto pelos artistas, quanto pelos espectadores, porque ninguém possui papel passivo nesse processo, já que para o espectador compreender a obra de arte é preciso “repetir e reconstruir o processo criativo pelo qual ela veio à luz”.

A liberdade de expressão artística é justamente o direito fundamental que assegura ao artista mergulhar nesse bailado imprevisível e se entregar livremente às forças apolíneas e dionisíacas, à razão e ao desejo e que transitam entre o belo e o sublime cujo equilíbrio são essenciais para o desenvolvimento da arte.

A supressão no espírito humano de quaisquer dessas forças gera desequilíbrio que em um agir individual suprime do sujeito a capacidade de planejamento ou de criação. Mas, quando esse desequilíbrio se reflete no agir coletivo que tende mais a sufocar as forças dionisíacas, que são manifestações estéticas do sublime e, por isso, são mais susceptíveis de causar sensações de repulsa nos espectadores, é necessário a intervenção do Direito para assegurar a liberdade e proteger a audácia criativa manifestada por meio da arte.


As liberdades constitucionais são garantias essenciais ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade humana, além de irem ao encontro do ideário democrático do autogoverno popular. Essas liberdades reconhecem às pessoas a capacidade de julgarem por si mesmas o que é bom ou ruim, o que é certo ou errado.

A liberdade de expressão artística concede ao artista o direito de ser sincero com os seus próprios sentimentos e transmiti-los aos espectadores, o direito de tocar o espírito humano, seja por meio do belo, seja por meio do sublime que é o resultado do embate entre as forças apolínea e dionisíaca que move o artista na sua criação. A arte nem é boa e nem é má, é apenas arte. Ela convida o espectador a sair da sua passividade para participar do processo dialógico e dialético necessário à sua compreensão.

A imersão na obra de arte propicia ao espectador uma experiência estética única e subjetiva. Uma experiência que provoca sensações como amor e ódio, desejo e repulsa. E como essas experiências são individuais e resultam da forma como aprendemos no processo dialético os embates entre as forças apolínea e dionisíaca há, portanto, além do direito fundamental à liberdade de expressão do artista, um direito fundamental de liberdade do espectador em participar desse processo dialético de imersão na obra de arte.

Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”.


(1) NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J.Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 24.



(2) CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Trad. Tomás Rosa Bueno. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 244


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