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A dimensão cidadã no Sistema Nacional de Cultura 


Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY-SA-NC

 

O Sistema Nacional de Cultura (SNC), previsto constitucionalmente desde a Emenda Constitucional nº 71 de 2012, é regulamentado após uma espera de doze anos. A Lei nº 14.835/2024, que institui o Marco Legal do SNC, estrutura-se com previsões conceituais (art. 2º), um rol de princípios a serem observados (art. 3º), traça os objetivos do SNC (art. 4º) e a sua estrutura (art. 5º a 18). Define a competência dos partícipes (art. 19), dos Estados, do Distrito Federal (art. 20), e dos Municípios (art. 21), além de um conjunto de disposições finais (art. 22). 

 

A instituição do Marco Legal do SNC pela Lei nº 14.835/2024 é um momento de comemoração, pois o legislador finalmente sanou uma das suas omissões na regulamentação do campo cultural. Contudo, o longo tempo de espera pela festejada regulação não decorreu de um necessário amadurecimento e debate sobre a estrutura do sistema, mas de conjunturas outras que podem ser genericamente sinalizadas pela expressão “falta de vontade política”. Mas quando a vontade política tomou conta do Parlamento, transformou-se em pressa desmedida, o que resultou em algumas inconsistências legislativas. 

 

No caso, vou me ater a apontar duas inconsistências do Marco Regulatório do SNC com os preceitos constitucionais democráticos que colocam a referida lei num flerte paternalista, que é uma relação entre o Estado e os indivíduos semelhantes, respectivamente, a de um pai que considera o seu filho permanentemente incapaz de fazer uso de seu entendimento sem a sua direção.  

 

Neste sentido, a primeira inconsistência é considerar na referida lei que a dimensão cidadã da cultura corresponde apenas à “ação efetiva do Estado de garantia a todos do pleno exercício dos direitos culturais” (Art. 2, II). Este dispositivo legal minimiza a participação do cidadão no campo cultural, substituindo-a pela decisão técnica da burocracia estatal.  

 

Ora, da interpretação isolada deste dispositivo verifica-se que ela, inadvertidamente, dá pouca relevância à dimensão democrática e participativa, sendo que deve ser justamente ao contrário. A democracia deve impregnar qualquer alusão que se faça a termos como cidadão, cidadania ou dimensão cidadã.  

 

Nesta toada, a participação popular fica resumida a de um espectador passivo que deve aguardar a “ação efetiva do Estado” que definirá a política cultural e os direitos culturais que cada cidadão usufruirá. Logo, a definição dada pela lei para “a dimensão cidadã da cultura” está aquém de outras previsões constantes na própria norma que asseguram a participação da sociedade civil e estabelecem as conferências de cultura como espaços de participação social. 

 

A outra inconsistência é colocar entre os deveres do Estado, para o exercício dos direitos culturais, a “democratização dos bens e serviços culturais” (Art. 4, I). O termo “democratização” possui o sentido de ampliar o acesso e de formação de público, mas no campo cultural, em que a diversidade é princípio constitucional basilar, o desenho de políticas culturais feitas unicamente pelo Estado (sem participação popular) em que este tem o dever de dar acesso a todos, pode se transformar numa política cultural homogeneizante, o que afronta o texto constitucional no princípio da diversidade cultural e no próprio Marco Legal do SNC que assegura em diversos outros dispositivos a diversidade cultural, étnica, territorial e regional. 

 

Neste sentido, o adequado é promover uma democracia cultural em que os cidadãos são os protagonistas da construção das políticas culturais, em conjunto com o poder público. A dimensão cidadã da cultura tem que incluir a efetiva participação popular por meio dos indivíduos, grupos, comunidades e sociedade na elaboração e promoção das políticas culturais, assegurando a ampla participação para todos os grupos formadores da sociedade brasileira. 

 

Desta feita, é necessário assegurar que no plano legal a democracia cultural seja o farol interpretativo da Lei do Sistema Nacional de Cultural e da sua implementação com a adoção de processos democráticos que assegurem a atuação comunitária de forma democrática e participativa. A legislação está posta, cabendo a todos, sob a inspiração do pensamento de Peter Hãberle de uma sociedade aberta dos intérpretes, extrair do texto legal e constitucional a normatividade adequada para a efetivação dos direitos culturais.  

 

   

Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor e Pós-doutor em Direito. Professor da Universidade do Estado do Amazonas. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). É Autor do livro “Patrimônio cultural, democracia e federalismo” e coautor do livro “É disso que o povo gosta: o patrimônio cultural no cotidiano da comunidade” 

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