Parlamento, comunidade e participação para a cultura
- Blog Opinião
- há 6 dias
- 4 min de leitura

Allan Carlos Moreira Magalhães, Professor da Universidade do Estado do Amazonas, Doutor em Direito Constitucional, Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
No Brasil, as comunidades possuem um papel de protagonismo na seleção, promoção e proteção do patrimônio cultural assegurado constitucionalmente. Refiro-me ao disposto no artigo 216, § 1º da Constituição brasileira que estabelece o seguinte:
Art. 216 [...] § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, [...]
Deste dispositivo constitucional, destaco o substantivo colaboração que nomeia o ato de colaborar e que possui o sentido de trabalhar junto. Em italiano, a palavra Collaborazione possui igual sentido de lavoro in comune. Logo, o ato de trabalhar junto para selecionar, promover e proteger o patrimônio cultural consiste em um direito, mas também um dever atribuído à comunidade.
Na “Fase Brasil”, do XIV Encontro Internacional de Direitos Culturais, ocorrida em outubro, em Fortaleza, dialogando com Johanne Bouchard (Suíça), integrante do Grupo de Friburgo e da Organização das Nações Unidas (ONU), ela destacou a necessidade de se pensar em comunidade(s), no plural, o que é reconhecido na Carta de Friburgo, a partir da interpretação conjunta dos artigos 2º e 4º que tratam, respectivamente, da definição de ‘comunidade cultural’ e da liberdade que toda pessoa tem para escolher participar ou não de uma ou mais comunidades, e o direito de modificar essas escolhas. Na oportunidade, enfatizei que comungamos do mesmo pensamento plural para as comunidades, e acrescentei que, no Brasil, esse pensamento também é necessário para a dimensão do poder público.
Dessa maneira, devemos pensar também em Poder(es) Público(s), no plural, especialmente em um Estado Federal, que possui diferentes esferas de poder, além das funções estatais legislativas, executivas e jurisdicionais que estão inseridas na noção de poder público. Logo, o desafio neste contexto de pluralidades de comunidades e de poderes públicos é individualizá-los para lhes atribuir direitos e deveres.
No caso dos poderes públicos há suporte no direito positivo e na distribuição constitucional de competências. É preciso partir das práticas culturais para identificar quais são as comunidades que delas emergem.
O Brasil é um Estado Federal e define em sua Constituição (1988) a distribuição de competências entre os Entes Federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). A competência administrativa que demanda atos executivos é atribuída a todos os Entes (competência comum) para proteger bens de valor histórico, artístico e cultural. A competência legislativa afeta a cultura e o patrimônio cultural é atribuída de forma concorrente, em que a União edita normas gerais e Estados, Distrito Federal e Municípios suplementam a legislação federal.
Na legislação infraconstitucional no Brasil, especialmente as leis federais afetas ao patrimônio cultural (Decreto-Lei nº 25, de 1937 e o Decreto nº 3551, de 2000) são insuficientes para fazerem as vezes de uma norma geral apta a coordenar as competências dos Entes Federativos. Com isso, no campo do patrimônio cultural duas situações indesejáveis são recorrentes: a da sobreposição de ações dos entes federativos sobre um mesmo bem cultural, o que é inadequado sobre o prisma da eficiência administrativa; e a da inação dos Entes Federativos, quando nenhum deles age para promover e proteger o patrimônio cultural.
A ausência de definição expressa no direito positivo dos critérios norteadores da atuação administrativa dos Entes Federativos no Brasil para a promoção e proteção do patrimônio cultural, contudo, não pode ser lugar de omissões, nem de sobreposições. A solução está no princípio da subsidiariedade, implícito na Constituição brasileira, mas expresso no Tratado da União Europeia, e que sustenta a necessidade de que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos.
No Brasil, o Município é o ente mais próximo do cidadão, pois é onde a vida cultural e comunitária se concretiza.
Desta feita, a dimensão municipal é que deve ter preferência para desenvolver as ações pertinentes à proteção do patrimônio cultural, cabendo à União e aos Estados-Membros intervirem apenas de forma a auxiliá-los no exercício destas competências, quando os Municípios não puderem realizá-las suficientemente ou a União e os Estados-Membros possam realizar as respectivas competências de forma a produzir melhores resultados.
Insistir na primazia dos Municípios em relação aos demais entes da federação é necessário para assegurar o protagonismo das comunidades em relação à promoção e proteção do patrimônio cultural, pois se a vida comunitária e cultural acontece nos Municípios, é na dimensão municipal que vamos conseguir identificar as diferentes comunidades envoltas nas práticas culturais associadas ao patrimônio cultural.
Identificamos, portanto, o ente federativo mais próximo das comunidades. Agora, no escopo deste Encontro, nos cabe entender as competências do Poder Legislativo municipal aptas a assegurar o protagonismo comunitário. Na Constituição, a Câmara Municipal (parlamento local) tem suas competências legislativas inerentes a referido poder (criar normas jurídicas) e as funções fiscalizadoras.
A fiscalização do parlamento local envolve toda a gestão do Poder Executivo, exigindo que ele promova a proteção do patrimônio cultural local e, principalmente, que essa atuação assegure o protagonismo das comunidades que são os autênticos intérpretes do patrimônio cultural, pois são elas quem tecem as teias da vida que envolvem o patrimônio cultural em afetos.
O parlamento local e os seus membros devem se colocar ao lado das comunidades neste campo de disputas que é o do patrimônio cultural, promovendo diálogos, estimulando a participação comunitária e cobrando do Executivo municipal ações efetivas, pois é neste processo de diálogo que se avivam as relações sociais e fortalecem as comunidades.
Contudo, a dinâmica do Poder Legislativo no Brasil é o da construção de atalhos normativos com a edição de leis que declaram bens como patrimônio cultural, cujo envolvimento comunitário, quando há, resume-se a um requerimento ou abaixo assinado, insuficientes para animar as teias da vida que fortalecem os afetos que unem os indivíduos em comunidades.
Essa hiperatividade legislativa contraria o propósito constitucional porque o patrimônio cultural não demanda representação, mas participação das comunidades. Ele é vida, e vida não se vive pelo outro, não se representa.
Nota:
O presente texto é a síntese da palestra proferida pelo autor por ocasião do XIV Incontro Internazionale sui Diritti Culturali promovido pela Universidade de Fortaleza e Unitelma Sapienza, ocorrido em Roma, no período de 17-18 de novembro de 2025, para discutir o papel dos parlamentos no desenvolvimento dos direitos culturais, no painel com o mesmo título deste artigo.




