A concepção espanhola da expressão “fazedores de cultura”
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Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP)

No circuito da chamada comunidade cultural brasileira, é usada, com frequência, a expressão “fazedores de cultura”, em face da qual tenho resistências linguísticas e políticas, uma dando suporte à outra. Em termos linguísticos, é de uma sonoridade estranha, porque lembra a fórmula da língua inglesa, mal traduzida: cultural makers.
De fato, existe um movimento chamado culture maker, o qual estimula que as pessoas façam as coisas de que necessitam, desde os alimentos, passando pelas roupas e chegando a níveis mais complexos, como a própria moradia. Encontra síntese na expressão “faça você mesmo” [1]. Nesta concepção, fazedor de cultura, portanto, é potencialmente qualquer pessoa.
Todavia, na métrica da chamada comunidade cultural brasileira, os fazedores de cultura formam um grupo pequeno (se comparado com o geral da população), assim definido pela inteligência artificial, ao ser demandada a partir de documentos disponíveis em órgãos públicos de cultura: “A expressão fazedores de cultura se refere a pessoas que criam, mantêm e difundem manifestações culturais de forma direta e orgânica. São os artistas, músicos, escritores, poetas, mestres populares, artesãos, dançarinos e outros agentes que produzem cultura a partir de suas vivências, saberes e tradições locais”.
De fato, na rede de entes e órgãos de cultura é comum a especificação de um rol de atividades que, a partir dele, se reconhece alguém como um fazedor de cultura [2]. Até mesmo a Pasta ministerial do país, em seu site oficial, tem uma aba específica denominada Espaço Fazedores de Cultura [3], o que permite a inferência de se tratar de um grupo delimitado, pois do contrário seria um conteúdo de endereçamento universal. É como se existissem, de um lado, os fazedores (os listados), e do outro, os consumidores (o restante da população) de cultura.
Recortes deste tipo são justificáveis em situações extremas, como foi o caso da pandemia, todavia, não podem se prolongar para o cotidiano e o regular da atuação dos órgãos de cultura, pois representam uma exclusão severa da grande maioria da população, dando a sensação de privilegiamento de alguns, porque rompe com a concepção antropológica, segundo a qual todo ser humano faz cultura, independentemente de qualquer classificação.
Essa concepção inclusiva e ampliada parece ser o entendimento do Ministério da Cultura espanhol que, em 8 de julho de 2025, lançou seu primeiro plano nacional de direitos culturais, cuja essência foi explicada pela Diretora-Geral de Direitos Culturais, Jazmin Beirak, em entrevista que concedeu à jurista Laurence Cuny, também especialista na matéria, veiculada no site francês do Observatório das Políticas Culturais [4].
Ao explicar a vigente concepção de política cultural do país de Cervantes, Jazmin, ponderou: “Não se trata de ‘fornecer’ cultura, pois ela é antes de tudo produzida pela sociedade e não pelas instituições. Garantir uma oferta cultural não é suficiente. O verdadeiro objetivo é, antes, incentivar cada pessoa a ter poder sobre sua própria vida cultural. É preciso criar as condições para que as práticas culturais — em todas as suas expressões e manifestações — possam florescer, assim como é indispensável redistribuir os recursos para que ninguém seja excluído, e para que todas as pessoas, grupos e coletivos possam desenvolver plenamente uma vida cultural”.
Perguntada quais os obstáculos para o reconhecimento dos direitos culturais, a gestora espanhola concluiu sua resposta externando o entendimento de que “a cultura ainda sofre com a falta de relevância social: persiste a sensação de que ela diz respeito principalmente aos profissionais do setor, reforçada por uma forte setorização. Isso acabou por gerar um profundo distanciamento social. Muitas pessoas percebem a cultura como algo estranho, distante ou reservado a alguns privilegiados, quando, na verdade, ela nos constitui. O exercício da cultura deveria ser garantido a todas as pessoas”.
Deste modo, observando a inclusiva perspectiva espanhola, é razoável concluir que cada órgão de cultura somente gozará de proteção contra desprestígios, seguidas extinções e rebaixamentos, como frequentemente ocorre no Brasil, a partir do momento em que não haja espaço para que alguns o chamem de “meu”, mas desde o instante em o conjunto da sociedade sinta-se à vontade para chamá-lo de “nosso”.
Notas:
[1] O tema foi aprofundado na seguinte monografia: tcc_Lais dos Santos Souza.pdf
[2] Exemplo muito eloquente pode ser visto em: 5 - FAZEDORES DE CULTURA - Prefeitura de Tijucas
[3] Conferir em: Fazedores de Cultura — Ministério da Cultura
[4] Confira aqui: Vu d'Espagne : lancement du Plan pour les droits culturels
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