Louvre Abu Dhabi Divulgação/Divulgação
O interesse colonial da França sobre os continentes africano e asiático resulta das ações imperialistas engendradas no século 19. Assunto bastante difundido pelos livros de história, pelas teses antropológicas e pela visão de diferentes artistas em todo o mundo. Ousamos dizer que o mesmo interesse perdura revestido, porém, de outras matizes. Assim, é ainda na segunda metade da Primeira Guerra que tudo começa. Com os acordos para a divisão dos territórios que seriam divididos pelos vencedores.
Conforme o Acordo Sykes-Picot, a França e o Reino Unido assinaram em 19 de maio de 1916 a partilha da região. Quatro anos depois, franceses e ingleses se aliaram na Conferência de San Remo, ocorrida entre 19 e 26 de abril de 1920, para oficializar a divisão territorial do Oriente Médio otomano: Líbano e Síria para os franceses, Iraque e Palestina para os ingleses.
As investidas francesas na distribuição daquele território já estavam diretamente relacionadas à partilha da principal riqueza natural da região: o petróleo. De modo que a França recebia ¼ do ouro negro produzido naquelas terras. Criou-se uma cadeia de relações baseadas na interdependência econômica. Este teria sido um dos motivos para a eclosão dos movimentos locais lutando por autonomia.
À época, a França era a maior potência intelectual, acadêmica e artística ocidental, de modo que o seu poder alcançava todo o mundo. Ao longo das próximas décadas a presença francesa se imporia entre as comunidades africanas e árabes. Mas os atritos também eram cada vez maiores. Na década de 1960, eclodiram os movimentos civis organizados e as teorias pós-coloniais, que colocavam em xeque o uso da força e a dominação cultural ocidental sobre as culturas não-ocidentais.
Uma inteligente estratégia para a França, por seu turno, leva, no mínimo, dois aspectos em consideração: a manutenção do poderio cultural francês - sabe-se que, desde os anos 1960, a França pratica a “resistência cultural” face ao domínio anglófono, numa guerra de soft powers; e, também, o aumento do número de estudantes de francês; questão de princípio ao país, que pretende um aumento considerável de francófonos, até a metade deste século. Ao que se pode notar, as bases para este ambicioso projeto já estão lançadas.
Por isso, a França tem tentado adaptar-se a esta nova mentalidade internacionalista anticolonial, mas sem deixar de exercer a sua influência. Em 1975, os franceses criaram um acordo de cooperação cultural e técnica na área de educação com os Emirados Árabes Unidos (EAU), uma monarquia com regras locais muito rígidas e alta desigualdade social, formados por sete Estados: Abu Dhabi, Dubai, Sharjah, Umm al Qaiwain, Ajman, Ras el Khaimah e Fujairah.
Apesar dos períodos de instabilidade política na região, a parceria bilateral França/EAU tem sido ampliada. Não à toa, eventualmente a França é acusada por organizações não-governamentais internacionais de utilizar sua inteligência militar para dar suporte a países envolvidos em conflito armados locais.
Por um lado, a França ainda tenta manter e fortalecer a sua conexão com os povos francófonos africanos, por outro lado experimenta ondas de racismo contra árabes e muçulmanos em seu próprio território. Como estratégia, para demonstrar a superação destas dicotomias, resolveu apostar mais alto na cooperação cultural com os EAU no início deste século. E os EAU dobraram a aposta.
O plano de ambos os países é o de uma influência cultural mútua. Na década passada, o governo de Abu Dhabi traçou a estratégia de política cultural em três níveis: global, regional, local. Em particular, o patrimônio cultural e as artes têm sido áreas privilegiadas nesta relação cultural bilateral França/EAU. Hoje os EAU abrigam a maior comunidade de expatriados franceses e francófonos do Golfo.
A partir de um acordo de cooperação educacional, cultural, científica e técnica, em 2006 o governo erigiu uma Universidade Paris-Sorbonne Abu Dhabi (1) na capital do país. A universidade se concentra em Ciências Humanas, Sociais, Direito e Economia. Em contrapartida, anualmente os estudantes de Medicina partem dos Emirados para um intercâmbio em Paris.
A grande novidade, no entanto, é a criação do Museu Louvre Abu Dhabi (2), inaugurado no dia 8 de novembro de 2017, como o primeiro museu universal do mundo árabe projetado pelo mesmo arquiteto do Louvre francês, Jean Nouvel. Somente no ano da inauguração o museu recebeu um milhão de visitantes. A coleção do museu é composta por obras de arte multiétnicas que estavam guardadas em galpões do Louvre na França. As obras vão do período Neolítico à Modernidade.
Quanto ao patrimônio cultural, em 2016 o Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi criou um programa, a ser implementado até 2024, para a geração de 45 mil empregos no setor e o retorno aproximado de US$ 7 bilhões/ano. Devido aos inúmeros casos de bens culturais traficados nas regiões em conflito armado, a cooperação cultural entre países com os EAU leva em consideração a proteção internacional do patrimônio cultural. Isso, inclusive, levou à criação da Aliança Internacional para a Proteção do Patrimônio em Áreas de Conflito (ALIPH).
É com o auxílio da cooperação intelectual francesa que Abu Dhabi traçou a sua estratégia de transforma-se em um grande centro cultural internacional até 2030. O próximo passo das políticas de proteção do patrimônio cultural local e da preservação da cultura será a construção do Museu Nacional Zayed.
A ideia é a de conscientizar a população para o envolvimento com a proteção do patrimônio cultural e o conhecimento cultural através das artes. Bem como o de estimular a criatividade para a educação e a mudança social. Enfim, a cooperação cultural internacional França/EAU prevê a capacitação de todo o setor cultural em Abu Dhabi e a perspectiva de crescimento econômico diversificado na região.
Anaximandro Amorim - Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Advogado, bacharel em Direito e licenciado em Letras Português-Francês pela Ufes. Vice-Presidente da Comissão Especial de Direitos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB/ES.
Gilmara Benevides - Doutora em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduada em Direito e História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro da Association of Critical Heritage Studies (ACHS). Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).
(1) https://www.sorbonne.ae
(2) https://www.louvreabudhabi.ae
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