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Teatro Amazonas: beleza e flagelo numa Belle Époque para poucos




O Teatro Amazonas inaugurado em 31 de dezembro 1896 pelo governador Eduardo Ribeiro, mesmo sem a conclusão total das obras, consiste num dos bens de valor cultural símbolo da cidade de Manaus e da Região Amazônica. É em termos arquitetônicos, certamente, a obra mais significativa erguida durante o período áureo da borracha (1890 a 1910), cuja riqueza gerada com a extração do látex possibilitou à elite da cidade – formada, dentre outros, pelos Coronéis da Borracha ou Coronéis de Barranco – mergulhar na belle époque.

O Coronel de Barranco é descrito por Marcio Souza em sua obra “História da Amazônia” como patrão, senhor absoluto de suas terras e domínios “um misto de senhor de engenho e aventureiro vitoriano”, o que lhe permitia viver em dois mundos distintos e antagônicos: em Manaus era um “cavaleiro citadino”, mas no seringal era um “patriarca feudal”.

Essa figura contraditória é retratada por Cláudio de Araújo Lima no romance “Coronel de Barranco” com o personagem Cipriano, cearense que burla as regras estabelecidas enquanto seringueiro para acumular recursos e se tornar coronel, e nesta condição reina absoluto e age com um autoritarismo perverso para manter a sua própria lei, reproduzindo o sistema de dominação que anteriormente o reprimia.

O seringueiro, figura essencial para a manutenção do sistema extrativo da borracha na Amazônia, é criatura explorada no seringal e indesejável na cidade que sonhava ser a “Paris dos Trópicos”, cujas leis de tudo previa para impedir a presença daqueles desvalidos que eram empurrados para os arredores da cidade como o Umirisal que é símbolo na Amazônia dos excluídos e alijados dos serviços públicos que as elites tanto se orgulhavam de possuir. A vida dura dos seringueiros é retratada por Euclides da Cunha na crônica “Judas-Ahsverus”:

“Toda a Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora”.

O Teatro Amazonas é também símbolo e memória de toda a contradição representada na figura do Coronel de Barranco e de todo o flagelo infligido aos seringueiros. A riqueza que viabilizou os desfrutes e devaneios durante a Belle Époque que mudou o traçado urbano da cidade de Manaus e proporcionou a construção de edificações imponentes, a exemplo da referida Casa de Ópera, provém dessa relação de exploração que reduz o seringueiro a uma coisa apropriável pelo dono do seringal; e a refugo, para usar a expressão de Zygmunt Balman em sua obra “Vidas Desperdiçadas”, quando a exploração da borracha entra em crise e o seringueiro torna-se dispensável.

As edificações que compõem o conjunto arquitetônico do Centro Histórico de Manaus e, especialmente, o Teatro Amazonas, mesmo sendo fruto dessa plêiade de contradições nada célebres, quando do seu processo de patrimonialização são totalmente esquecidas. No Projeto de Lei do Senado nº 25, de 1966, de autoria do Senador Edmundo Levi, consta como justificativa para elevar esse bem cultural à categoria de monumento nacional que:

“O Teatro Amazonas (...) não se destaca apenas como monumento de arquitetura artística, mundialmente conhecido; mas para o povo, representa uma época, pereniza uma epopeia e se realça como um símbolo. Época de luta por um ideal de grandeza; epopeia do domínio do Brasil sobre a mais vasta extensão da Bacia Amazônica”.

Por certo, o povo a que se refere essa justificativa parlamentar é formado apenas pela elite que desfrutou da Belle Époque e propagava referidos ideais, pois o seringueiro apenas estava familiarizado com o flagelo da sua existência. Os ciclos de exclusões e apagamentos da memória e da história atrelado ao período da borracha não cessam, pois se regionalmente o seringueiro foi excluído desse processo de patrimonializacão, o período da borracha e os seus impactos na cidade de Manaus e no Brasil são ignorados ao nível nacional.

Para Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do IPHAN à época, o Teatro Amazonas mesmo sendo símbolo de todo esse período de transformações conhecido como Belle Époque, não possuía “nem ancianidade venerável que lhe empreste os requisitos de um monumento nacional, nem se acha vinculado diretamente a fato ou passagem de significação excepcional da história do país” (1).

Assim, não é exagerado concluir que a patrimonialização do Teatro Amazonas foi concebida em meio a um processo administrativo que beirou o arbítrio, um resquício da “fase heroica” que permeou as primeiras ações protetoras do IPHAN (antigo SPHAN) durante o governo Getúlio Vargas (1937-1945) no bojo de um Estado paternalista que se arvorava em saber quais bens e valores culturais compunham a identidade nacional.

O Teatro Amazonas enquanto patrimônio cultural tombado é representativo e vítima desse processo que ao ignorar as contradições do processo histórico que viabilizou a sua edificação faz com que referido bem seja identificado apenas com os valores de um grupo privilegiado, quando em verdade o valor cultural deste bem é igualmente resultado de um sistema perverso de exploração em que o seringueiro trabalhava para se escravizar.

Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)



(1) IPHAN. Tombamento Teatro Amazonas. Processo nº 693-T-63. Dossiê. Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização – DEPAM/IPHAN, 1963.

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