O tempo sempre segue adiante, consumindo a tudo e a todos. Ele é impiedoso e deixa marcas em tudo que existe no mundo como as linhas de expressão no corpo humano ou as ruínas de um monumento. Na mitologia grega, Cronos, deus do tempo, é destronado pelo seu filho Zeus que ao subjugar o seu genitor concede a imortalidade aos deuses. Os seres humanos, contudo, são mortais e têm a sua existência regrada pelo ciclo da vida que principia pelo seu nascimento e encerra com a sua morte: eventos da natureza que possuem relevância jurídica, pois marcam o início e o fim da personalidade.
Mas, o desejo humano de controlar o tempo, assim como realizado pelo senhor do Olimpo, seja para alcançar a imortalidade ou para viajar através dele e corrigir os erros do passado, aproveitando o conhecimento do futuro, permanece, até onde se sabe, restrito ao campo ficcional. Este fato, contudo, não impediu que os faraós tentassem alcançar a divindade, pois no Egito Antigo eles buscavam a imortalidade pela realização de ritos que acreditavam habilitá-los a se tornarem Osíris.
No momento, o que o tempo possibilita aos seres humanos é viver o presente com as lições extraídas do passado. O futuro, no entanto, continua incerto. Ele pode ser planejado, mas não subjugado. A impossibilidade de controlar o tempo, no sentido de se deslocar fisicamente nele, seja para o passado seja para o futuro, não impede que ele possa ser mensurado, até porque a contagem é algo naturalmente associado ao tempo.
Os diferentes povos, mesmo quando não tinham bem delimitadas as noções de passado, presente e futuro, desenvolviam métodos de contagem do tempo, ainda que com base em fenômenos facilmente perceptíveis e repetíveis como a aurora, utilizada por Homero na Ilíada com o intuito de indicar o transcurso do tempo entre os eventos que se sucedem neste poema épico. Outros fenômenos também são utilizados para metrificar o tempo como a cheia e a vazante dos rios, as estações do ano, as fases da lua, até mesmo o canto do galo que ainda faz parte do cotidiano de muitos.
Atualmente, a humanidade conta com calendários e instrumentos como o relógio que estão cada vez mais exatos, pois milésimos de segundo determinam quais atletas estarão nos braços da deusa Nice. Os atletas não são os únicos regidos pelo compasso do tempo. O ritmo do mundo moderno torna a humanidade escrava do tempo, pois ela tem horário para tudo, inclusive para comer, já que não é a fome quem dita o momento da refeição, mas o ponteiro do relógio.
Para Einstein “tudo é relativo”, o tempo também se mostra assim especialmente quando analisado sob a ótica da experiência individual cuja percepção da sua duração e repetição é realizada por cada indivíduo. Alguns minutos parecem uma eternidade quando se está submetido a uma situação de dor; já momentos felizes tendem a ser percebidos como muito curtos, pois o desejo é de prolongá-los indefinidamente.
A vida segue a marcha do tempo cuja contagem assegura a chance de recomeços como no alvorecer de cada dia, no natalício de cada indivíduo, no início de cada ano que é comemorado no réveillon. A identidade cultural de um povo também é forjada nas suas manifestações culturais, nos festejos que marcam momentos relevantes para a comunidade e que precisam ser celebrados e revividos a cada unidade de medida do tempo, como as horas, os dias, os meses ou os anos.
A repetição desses ciclos e o conhecimento adquirido no passado dão uma sensação de segurança e até mesmo a ilusão de conseguir prever o futuro, pois cada indivíduo, grupo ou coletividade constrói para si um cotidiano que foi retratado na canção de Chico Buarque: “Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me sacode às seis horas da manhã / Me sorri um sorriso pontual / E me beija com a boca de hortelã”. Mas, o cotidiano juntamente com a sensação de segurança traz a estagnação.
Assim, é preciso uma alternância entre momentos de ruptura e reconciliação com o cotidiano, inclusive para que haja espaço para o desenvolvimento da criatividade humana. Contudo, o isolamento social imposto por uma necessidade de saúde pública provocou uma ruptura abrupta no cotidiano vivido até então, e essa nova realidade ainda não foi assimilada de forma a possibilitar uma reconciliação com o cotidiano emergente, pois ainda não transmite segurança diante de um futuro cada dia mais incerto, o que se mostra contraditório com a sensação perturbadora de que os dias parecem sempre os mesmos.
De Manaus (AM) para Fortaleza (CE), 17 de maio de 2020
Allan Carlos Moreira Magalhães
Doutor em Direito, professor e pesquisador
com estudos no campo dos Direitos Culturais
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