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Patrimônio cultural: quem escolhe?

Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY-NC-ND

A escolha dos bens culturais que merecem proteção pelo Poder Público é questão tormentosa porque coloca em confronto os mais diferentes interesses: se a proteção for pelo tombamento, os proprietários logo se insurgem com o receio de terem os seus direitos de uso, gozo e disposição sobre os imóveis históricos e culturais limitados por esse ato administrativo. E, com isso, não raras vezes, fazem desde logo o interesse na preservação perder o seu objeto, demolindo tais bens, como ocorreu com o antigo prédio do “Boteco Praia”, em Fortaleza, centro de uma discussão acerca do seu valor cultural.

Agora, se a proteção for pelo Registro, por se tratar de um bem cultural imaterial, os conflitos decorrem da concorrência entre os diferentes grupos e detentores que almejam o reconhecimento das suas práticas e manifestações culturais como Patrimônio Cultural Imaterial. Com isso, é gerada uma demanda ao Poder Público que sua estrutura não consegue muitas vezes absorver, provocando o que Norberto Bobbio (1) chama de germe da ingovernabilidade, que é a incapacidade de as democracias lidarem de forma satisfatória com os conflitos em uma sociedade. No caso, os conflitos afetos aos bens culturais que devem ser protegidos.


O passo inicial da proteção dos bens culturais é uma escolha que não incide apenas sobre aqueles bens que serão protegidos, mas também recai sobre aqueles que não serão protegidos, e que, portanto, podem não ser conhecidos e vividos pelas futuras gerações.

O início da proteção institucionalizada do patrimônio cultural no governo Getúlio Vargas (Estado Novo) legou para as gerações futuras os bens materiais vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil e aqueles bens de excepcional valor, estando a escolha desses bens confiada aos intelectuais. Com isso, a escolha recaiu sobre um acervo patrimonial representativo dos valores dominantes na época, com a adoção de procedimentos que reproduziam o regime político vigente, avesso à participação popular.


A Constituição brasileira de 1988 consagra o paradigma participacionista em que as escolhas acerca dos bens a serem protegidos não estão mais confiadas apenas aos intelectuais, mas à comunidade, conforme inteligência constitucional que atribui aquela o papel de intérprete do seu próprio patrimônio cultural na colaboração com o Poder Público.


A comunidade é elemento legitimador das políticas de proteção do patrimônio cultural, sendo imprescindível a colaboração dela no processo de escolha dos bens culturais que serão legados às gerações futuras, pois a definição do que concretamente é patrimônio cultural depende da efetividade deste fator democrático.


Assim, a escolha dos bens culturais a serem protegidos deve ser procedida de uma atuação colaborativa entre Poder Público e comunidade, esta como protagonista nesse processo que deve favorecer um agir democrático apto a aproximar a comunidade das instâncias decisórias, especialmente as locais, pois o município é o ente da federação mais próximo da comunidade e do cidadão, espaço concreto onde o patrimônio cultural material e imaterial se fazem presentes em toda a sua complexidade.

Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”.

1- BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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