Distrito de São José das Três Ilhas, Belmiro Braga (MG). Yussef Campos, 2013
Não é exagero afirmar que patrimônio é, hoje em dia, uma ideia bastante conhecida e difundida. Mais de dois séculos já se passaram desde as primeiras discussões que viriam a contribuir para a atual noção de patrimônio, conforme mostrou Françoise Choay, em A Alegoria do Patrimônio. (1) Mais ainda, como sugere José Reginaldo Gonçalves, seria possível remeter ao mundo clássico e à Idade Média, até mesmo às sociedades tribais para identificar a constituição da categoria patrimônio, tomada como “categoria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana”. (2)
Se, ao longo do tempo, patrimônio remeteu à noção de propriedade, colecionismo, nacionalidade, excepcionalidade, no presente, o termo é facilmente associado ao reconhecimento pelo poder público e mesmo grupos variados, de bens culturais exemplares ou significativos que formam um acervo partilhado de bens de tipologias variadas e que remetem à diversas narrativas afetivas, históricas, artísticas, nacionais; assim como às políticas públicas que têm por dever-competência a manutenção, continuidade e legado desses bens, muitas vezes com valorização de seus vínculos com o passado e ênfase no usufruto pelas gerações futuras.
Patrimônio, porém, tem raízes e consequências profundas e sensíveis com o presente, que necessariamente tencionam as ênfases e vínculos com os tempos passados e futuros. Isso porque, como nos explica Marcia Sant’Anna, “é sempre o presente – suas demandas, disputas e questões – o que orienta a identificação e a escolha do que deve ser preservado”(3).
Patrimônio, portanto, coloca-se como um campo de tensão de temporalidades e também de disputas de demandas, questões, perspectivas, visões de mundo, valores, modos de vida, conhecimento, saberes, epistemes, poderes.
Importante epicentro dessas disputas são as instituições de identificação, reconhecimento, preservação e salvaguarda do patrimônio cultural. Nelas, perpassa o que vem sendo estudado como Discurso Autorizado de Patrimônio (4), que são as ações, rotinas, narrativas, performances, instrumentos, procedimentos marcados pela produção de conhecimento especializado sobre patrimônio. Conhecimento esse que é oficializado pelo Estado e que legitima tanto lugares, tradições, manifestações e bens, como agentes autorizados a definirem e gerirem tais bens.
O espaço de disputa que tais instituições abrigam está diretamente relacionado ao conhecimento produzido no âmbito dessas instituições e no contexto das práticas de preservação, na medida em que o conhecimento produzido aciona uma variedade de questões: em que perspectivas, visões de mundo e valores está baseado? Quem são os agentes mobilizados nessa produção e que papéis assumem?
É corrente a noção entre os estudiosos de patrimônio da preponderância de intelectuais modernistas, notadamente arquitetos, na construção do campo do patrimônio cultural no Brasil. Menos evidente – talvez por ser mais recente – é a percepção de um dos maiores especialistas em patrimônio cultural do país sobre o locus e os agentes legitimados para tal produção de conhecimento. Ulpiano Bezerra de Meneses destacou o deslocamento de matriz da instituição do valor cultural de um bem – transferida do poder público para a comunidade, como a novidade radical trazida pela Constituição de 1988 para o campo do patrimônio. (5)
Esse deslocamento trouxe, em seu bojo, a legitimação de novos sujeitos culturais e políticos para o campo do patrimônio, ao afirmar “os grupos formadores da sociedade brasileira” e a “comunidade” como a matriz dos valores culturais atribuídos aos bens e atribuir a eles responsabilidade na promoção e proteção do patrimônio cultural. Propôs, portanto, afirmar patrimônio como local de encontro do poder público, seus especialistas e técnicos com aqueles que experienciam mais de perto esse patrimônio: moradores, proprietários, detentores, visitantes, brincantes, devotos, falantes.
Patrimônio extrapola, assim, sua definição como reconhecimento, acervo e política pública para afirmar-se como lugar de encontro dos saberes e experiências inesgotáveis que marcam a diversidade cultural constituinte do patrimônio cultural.
Encontro que exige escuta e tradução: escuta como o exercício intelectual e político de reconhecer a parcialidade do próprio conhecimento e a riqueza daquilo que o outro nos apresenta em sua experiência e saberes vivenciados e reproduzidos no tempo; e tradução, conforme propõe Boaventura de Sousa Santos, como “procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo”. (6)
Ao exigir do agente público do patrimônio capacidade de escuta e tradução frente ao conhecimento dos grupos formadores da sociedade brasileira, o patrimônio contribui para fortalecer e divulgar os diversos saberes, experiências e narrativas disponíveis; para fortalecer e enriquecer, enfim, o próprio conhecimento do mundo.
Claudia Feierabend Baeta Leal - Historiadora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com lotação do Centro Lucio Costa: Escola do Patrimônio, onde atua como docente do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN.
Yussef Daibert Salomão de Campos - Professor da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Atua também nos Programas de Pós-graduação em História e ProfHistória, na mesma instituição.
(1) CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação da Liberdade/UNESP, 2001.
(2) GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In. ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, pp.25-33, 2009.
(3) SANT’ANNA, Marcia. Preservação como prática: sujeitos, objetos, concepções e instrumentos. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro; Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015.
(4) Cf. SMITH, Laurajane. Uses of Heritage. New York: Routledge, 2006.
(5) MENESES, Ulpiano Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. Conferência Magna. Anais do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Vol 1. Brasília: IPHAN, 2012.
(6) SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: Para uma nova cultura política.
São Paulo: Cortez Editora, 2010.
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