Artigo publicado no Estadão
O Decreto nº 3.551, que regulamenta em âmbito federal o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, completa neste mês de agosto duas décadas de existência, o que torna inevitável questionarmos: há razões para comemorarmos? A resposta é sim. E podemos pontuar alguns desses motivos.
O primeiro é que num país cuja legislação é feita para não ser aplicada (confira aqui), essa é uma norma cuja prática administrativa rapidamente lhe deu efetividade, de tal forma que o seu status jurídico, situado abaixo das leis, não foi obstáculo para a implementação de uma mudança de rumo na política de proteção do patrimônio cultural.
O referido decreto rompe a hegemonia do tombamento (Decreto-Lei nº 25, de 1937) dos bens culturais ligados a fatos memoráveis da História ou dotados de valor excepcional, dando espaço a um novo conjunto de bens culturais, cuja dimensão imaterial é predominante. O bem a ser protegido pelo Registro não é o patrimônio de “pedra e cal” (1) de natureza estática e que anseia a imutabilidade, mas os saberes, as formas de expressão, as celebrações e os lugares onde se reproduzem práticas culturais coletivas.
Essa mudança cria um importante espaço para o desenvolvimento de uma democracia cultural que pode ser considerada um outro motivo para festejar o respectivo decreto, pois mesmo em construção e precisando ser aperfeiçoada, ela viabiliza o reconhecimento do valor cultural dos bens pertencentes a grupos não hegemônicos, que reivindicam o seu espaço legítimo na construção da identidade cultural brasileira, a partir da diversidade.
A capoeira é exemplo dessa mudança. O Código Penal de 1890 considerava crime “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem”. A pena: “prisão cellular por dous a seis mezes” (Art. 402). Atualmente, a capoeira (Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira) é patrimônio cultural brasileiro registrado pelo IPHAN (2008) nos Livros dos Saberes e das Formas de Expressão e a UNESCO (2014) lhe conferiu o título de patrimônio da humanidade.
O Brasil possui 48 bens culturais imateriais registrados pelo IPHAN com fundamento na referida norma. A dimensão territorial do país e a diversidade cultural existente pode induzir alguns a pensarem que não seja um número expressivo. Contudo, mais importante que a quantidade é a continuidade dos registros, sendo este um terceiro motivo para celebrar as conquistas desta norma, pois desde 2002, ano dos primeiros Registros (Ofício das Paneleiras de Goiabeiras e Arte Kusiwa), mantém-se uma regularidade, de forma que a norma nunca caiu em desuso, mas, ao contrário, está em processo de consolidação de uma política cultural que tem o desafio de se redesenhar a cada ação de salvaguarda e se adequar às peculiaridades de cada bem cultural imaterial, pois são dinâmicos e mutáveis.
Mas, além de dar visibilidade às comunidades não hegemônicas, o Registro dos bens imateriais evidencia a importância dos detentores desse patrimônio (mestres de capoeira, paneleiras, rendeiras, artesãs, entre outros) e das comunidades a que pertencem, tornando-os sujeitos essenciais na construção da política de salvaguarda, como intérpretes do seu próprio patrimônio.
Assim, o quarto motivo para saudar as conquistas da política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial é a mudança, mesmo tímida, mas que tende a consolidar a participação comunitária na construção da política cultural de salvaguarda dos bens culturais intangíveis conjuntamente com o poder público.
Esses motivos de celebração do Decreto nº 3.551, de 2000 (efetividade, democracia cultural, continuidade e participação comunitária) não estão consolidados, mas apontam um importante caminho a ser trilhado para a efetivação dos direitos culturais. Para tanto, é preciso dar continuidade às atividades de instrução dos processos (lista aqui) que se encontram em curso perante o IPHAN, para permanecer priorizando o saber construído e não o saber dado.
De Manaus (AM) para Fortaleza (CE), 12 de agosto de 2020.
De Manaus (AM) para Fortaleza (CE)
Allan Carlos Moreira Magalhães
Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais
(1) Expressão utilizada por Maria Cecília Londres Fonseca (2009, p. 59-79).
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