O Brasil possui uma atividade legislativa intensa como mostra o estudo da FGV - Congresso em Números – pelo qual se constatou que no período de 1988 a 2017 passaram pela Câmara dos Deputados mais de 80 mil proposições legislativas. Desse total, a apresentação de Projetos de Lei - PLs, aqueles que podem ser propostos por qualquer deputado ou senador, atingiu a marca de 56,8 mil, dos quais apenas 4,63% foram aprovados, o que torna crível especular que há uma preocupação maior com uma certa autopromoção baseada numa pseudoprodutividade de proposições legislativa, do que mesmo com a aprovação das mesmas pela construção de consensos entre os parlamentares.
Além disso, quando se constroem consensos para a aprovação de um Projeto de Lei - PL, isso ocorre, muitas vezes, às custas da própria possibilidade da efetividade das leis. Com isso, mesmo havendo um certo exagero na comparação, o conteúdo da produção legislativa no Brasil, especialmente a do campo cultural, assemelha-se ao dos textos literários do gênero fantástico porque carrega as características desse tipo de narrativa, já que as normas jurídicas retratam um mundo irreal, o que faz delas uma espécie de ficção que se vale da vida cotidiana apenas para que seus destinatários continuem sonhando com a sua concretização. Isso ocorre porque a Lei, não raras vezes, retrata um dever ser mais aproximado dos elementos maravilhosos, imaginários e mesmo inverossímeis característicos de uma literatura fantástica.
Nos bancos escolares os estudantes de Direito desde cedo aprendem que no mundo jurídico a forma e a finalidade da interpretação do texto da Lei é diferente daquela dos textos literários, porque se interpreta uma Lei para aplicá-la, para concretizá-la, não esgotando o seu propósito unicamente na compreensão dos seu sentido, como ocorre nos textos literários. É certo que a leitura é transformadora, amplia horizontes e faz os leitores sonharem e viajarem por diferentes mundos. O limite dos textos literários é a imaginação daqueles que se lançam nessa viagem. Contudo, as transformações promovidas pelos textos literários são internas aos indivíduos, que assim podem mudar suas ações e atitudes. Já a interpretação e aplicação das normas jurídicas são exteriores e independem do desejo destes de internalizarem nas suas condutas os comandos normativos.
Com isso, quando a Constituição no Art. 215 determina que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, acesso às fontes da cultura nacional, bem como apoio e incentivo às manifestações culturais, lhe impõe deveres, dentre os quais o de agir, incluindo a obrigação de instituir, por lei, o Plano Nacional de Cultura, com o propósito de conferir efetividade ao comando constitucional.
Essa determinação é atendida formalmente com a edição do Plano Nacional de Cultura - PNC (Lei n. 12.343, de 2010). Contudo, a definição das suas diretrizes, estratégias e ações, ao que tudo indica, foram fixadas por consensos baseados nos desejos de todos aqueles que contribuíram para a sua formulação, mas sem um senso crítico acerca da viabilidade da sua efetivação. Um tipo de consenso por aglutinação de ideias e desejos, no qual é praticamente impossível encontrar alguém que se oponha ao que nele está previsto, pois institui um conjunto ideal de normas que vai ao encontro dos anseios de todos.
Quem ousaria se opor à previsão constante no PNC acerca da preservação do patrimônio cultural material e imaterial, por exemplo? Por certo ninguém ou bem poucos se aventurariam nessa discordância porque metas dessa natureza atendem aos anseios dos mais diversos segmentos sociais, políticos, ideológicos, culturais.
Com isso, o PNC cria um mundo maravilhoso que contempla o sonho de todos, mas apenas enquanto estiver restrito ao universo abstrato das leis, interpretado segundo os limites e finalidades dos textos literários, sem nenhuma possibilidade de concretização ou efetividade. Assim, o Poder Legislativo que é a arena própria para as disputas políticas não enfrenta a essência das questões afetas ao campo cultural, pois não se compromete com a confecção de leis exequíveis, já que isso implica assumir os custos políticos desses embates, e os parlamentares sempre estão pensando em suas reeleições.
Já passou do tempo de o Legislador adotar uma postura mais responsável com relação a edição de leis que sejam eficazes e os diversos segmentos culturais igualmente precisam repensar sua forma de reivindicar a atuação do Legislativo, cobrando desse não unicamente a edição de leis para o setor, mas de leis que tenham efetividade.
De Manaus (AM) para Fortaleza (CE), 08 de julho de 2020.
Allan Carlos Moreira Magalhães
Doutor em Direito, professor e pesquisador
com estudos no campo dos Direitos Culturais
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