O primeiro instrumento de proteção internacional do patrimônio cultural em tempos de conflito armado é a IV Convenção de Haia de 1907, criada no âmbito do direito humanitário pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). O texto da Convenção traz dois artigos sobre a proteção dos bens culturais. É o primeiro registro do uso de um símbolo para identificar os locais que devem ser protegidos durante a guerra.
Consta no artigo 27 da IV Convenção de Haia de 1907 o dever do Estado sitiado de indicar, por meio de placas visíveis e avisos, os locais onde estão localizados os bens culturais a fim de que os agressores evitem danos a estes lugares. Por sua vez, o artigo 56 trata sobre o caráter internacional de proteção destes bens culturais. (1)
Após os danos causados aos bens culturais durante a Primeira Guerra (1914-1918) e da Segunda Guerra (1939-1945), começaram as tratativas para a elaboração de instrumentos específicos para a prevenção dos bens culturais em tempos de conflito armado. Dessa maneira surgiu a Convenção para a Proteção de Bens Culturais em caso de conflito armado e seu Protocolo, durante a Conferência Internacional em Haia, entre 21 de abril a 12 de maio de 1954.
Como é de praxe, o documento original convencional encontra-se depositado nos arquivos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ao passo em que as demais cópias são enviadas para todos os Estados que a assinaram. O Brasil publicou a aprovação da Convenção de Haia de 1954 no Decreto Legislativo nº 32/1956, à época assinado pelo então Presidente da República, João Goulart.
Dessa maneira entrou em vigor a Convenção de Haia de 1954 e seu Protocolo, idealizados em tempos de paz, mas com a finalidade exclusiva de sua aplicação para os casos de prevenção, salvaguarda e respeito aos bens culturais tangíveis e intangíveis em tempos de guerra. O texto da convenção ressalta a necessidade de proteção dos bens culturais de grande importância para o patrimônio cultural dos povos.
A Convenção de Haia de 1954 propõe o resguardo dos monumentos arquitetônicos, dos objetos de arte, de artefatos históricos, religiosos e seculares. Bem como dos sítios arqueológicos e dos locais que reúnam estes objetos como as coleções científicas e bibliotecas. A salvaguarda também enfatiza a tutela dos edifícios que contenham bens culturais móveis, ou seja, os museus, as grandes bibliotecas, os depósitos de arquivos e os demais centros que contenham monumentos.
O símbolo do Escudo Azul – mundialmente conhecido como Blue Shield (2) – está descrito no artigo 16 da Convenção de Haia de 1954 como um emblema específico para indicar os locais onde se encontram os bens culturais que devem ser protegidos. O instituto remonta ao artigo 27 da IV Convenção de Haia de 1907, que introduziu a preocupação com os bens culturais e a proteção especial a estes objetos e monumentos.
A Convenção de Haia de 1954 também passou a complementar o Pacto de Washington de 15 de abril de 1935, elaborado para a proteção de Instituições Artísticas e Científicas e de Monumentos Históricos, conhecido como Pacto Roerich. Nesta ocasião, a bandeira descrita no Pacto Roerich foi substituída pelo emblema delineado pela Convenção de Haia de 1954.
Após quarenta anos de existência, em 1994, houve uma profunda revisão da Convenção de Haia de 1954. Em decorrência dessa reestruturação, dois anos depois se constituiu o Comitê Internacional do Escudo Azul/Blue Shield (CIBS) (3) na condição de organização internacional não-governamental sem fins lucrativos.
Em razão dos danos cometidos ao patrimônio cultural ao longo dos conflitos civis na região dos Bálcãs, na primeira metade da década de 1990, o regime de proteção do patrimônio cultural foi aprimorado e estendido aos bens culturais de maior importância para a humanidade, segundo consta no Segundo Protocolo da Convenção, acordado em 1999.
À época da campanha militar liderada pelos EUA, a Guerra ao Terror, apoiada por outras potências ocidentais, a atuação do Escudo Azul/Blue Shield teve o seu alcance ampliado. Isto porque as invasões ao Afeganistão (2001) e ao Iraque (2003) desorganizaram a região e desencadearam uma série de crimes contra os bens culturais nos países do Oriente Médio, Ásia Meridional, Sudeste Asiático e países do Chifre da África.
O Tribunal Penal Internacional passou a empregar um tipo penal específico para punir os “crimes de guerra”, dentre os quais as condutas cometidas contra os bens culturais, a partir de 2016. No ano seguinte, o Escudo Azul/Blue Shield foi consultado acerca da elaboração da primeira Resolução do Conselho de Segurança (2347), no âmbito das Nações Unidas, sobre a destruição intencional do patrimônio cultural.
Desde a sua criação, o papel do Escudo Azul/Blue Shield também é o de treinar e capacitar equipes nacionais para reconhecer e impedir o saque e o tráfico ilícito, bem como o de resgatar objetos culturais em diferentes cenários de risco, inclusive aqueles provocados por desastres ambientais ou ação humana. Por exemplo, no Brasil a atuação do comitê nacional já se ocupou do resgate de bens culturais após desastres naturais, inclusive em casos de salvamento de bibliotecas inteiras após grandes enchentes.
As Assembleias Gerais do Escudo Azul/Blue Shield acontecem de forma presencial a cada três anos, porém, em 2020 essa data coincidiu com um cenário de isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19. Desse modo, o evento foi adaptado para o ambiente virtual online.
Em junho de 2021, para abrir as comemorações do aniversário de 25 anos de existência do Escudo Azul/Blue Shield, houve um painel histórico de discussão com a participação de seus fundadores signatários e o primeiro presidente da instituição (4). Tudo indica que haverá, ainda, uma Assembleia Geral Extraordinária no mês de agosto, encerrando, assim, as solenidades deste ano.
Gilmara Benevides - Doutora em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduada em Direito e História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro da Association of Critical Heritage Studies (ACHS). Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
(1) O artigo 27 indica que, durante cercos e bombardeios, devem ser tomadas as medidas necessárias para proteger os edifícios de uso civil, aqueles dedicados à religião, arte, ciência, caridade, monumentos históricos, hospitais e asilos. No artigo 56 consta que estes prédios, ainda que sejam propriedade do Estado, para fins convencionais serão tratados como bens privados, sendo proibida a apreensão, destruição ou dano intencional, cometido contra instituições desta natureza, bem como os monumentos históricos, obras de arte e de ciência, tornando-os objeto de ação judicial.
(2) O Escudo Azul é símbolo distintivo foi projetado com o formato de um escudo azul com uma ponta para baixo, partido como aspas, contendo as cores azul e branco; e um quadrado azul marinho com dois triângulos brancos ao lado. O uso escudo azul repetido três vezes é empregado para identificar os bens culturais que gozam de proteção especial, as operações de transporte, os abrigos improvisados previstos neste diploma internacional. Quando usado isoladamente, o escudo azul também indica os bens culturais que não gozam de proteção especial, as pessoas incumbidas das funções de vigilância, o pessoal do serviço de proteção dos bens culturais e impresso nos cartões de identidade, conforme previsto no Regulamento da Convenção.
(3) A fundação do comitê é de responsabilidade de quatro outras organizações da mesma natureza não governamental: o Conselho Internacional de Arquivos (ICA), o Conselho Internacional de Museus (ICOM), a Federação Internacional de Associações e Instituições de Bibliotecas e o Conselho Internacional de Museus e Sítios (ICOMOS).
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