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Metamemória: A memória que transcende



Imagine entrar em um espaço físico onde, após o consumo de uma substância química, o visto e o vivido assemelham-se a um desenho animado. É o que acontece n’O Congresso Futurista [1] quando a protagonista, 20 anos após ser digitalizada, vai ao evento em uma “zona animada”, apresentando ao telespectador uma coletividade que passa da realidade natural à vivência quase completa nessa outra perspectiva, a “festa química”, que mascara as condições reais da sociedade. Apesar de não ser necessário um suporte digital ao experenciado na história, não é difícil conjeturar o cenário como resultado de possível sucessão de eventos desencadeados pelo metaverso, ambiente virtual acessado via internet e por meio de algum dispositivo digital, com realidade híbrida (realidade virtual, aumentada, holográfica, entre outros) e onde é possível criar avatares para nos representarem em lugares virtuais coletivos.


Na zona animada d’O Congresso Futurista as pessoas estão fisicamente presentes, mas vivenciam tudo a partir da droga consumida e da própria química produzida, as quais, inclusive, proporcionam mudanças de formatos em suas características animadas visíveis.


Ambas as camadas de realidade, seja a festa química, seja o metaverso, integram, concomitantemente e à sua maneira, os mundos material e virtual, proporcionando novas camadas de lugares e espaços nos quais nos relacionamos.


Para além das questões psicológicas, trabalhistas, econômicas, sociais, identitárias, entre outras, que têm constantemente rondado qualquer discussão que envolva inteligência artificial, metaverso, realidade aumentada etc. e etecétera, é bom lembrar que também nos relacionamos e produzimos nesses espaços. E onde há relações e produção humana, as quais advêm de quem somos e do que vivemos individualmente e em coletividade, há história e memória, e há processos de memorialização.


No final do século passado, os lugares de memória tinham classificações [2] (topográficos, monumentais, simbólicos e funcionais) e aspectos [3] (material, funcional e simbólico, com coexistência atrelada) que não mais se encaixam nem são suficientes às dinâmicas coletivas atuais, pautadas em avanços tecnológicos que demandam novas formas de compreensão e produzem modelos de criar, fazer e viver inesperados, como são ótimos exemplos as lives do TikTok, bizarras, mas monetizadas e altamente rentáveis. Apesar de o fio temporal aqui desenrolado ser longo, demonstra a necessidade de constante atualização e de como esses conceitos acompanham os movimentos da sociedade.


Há algumas décadas é possível compreender que os lugares de memória já não se restringem a espaços materiais, podendo ser percebidos e vivenciados também em experiências, como naquelas relacionadas ao patrimônio cultural imaterial e aos fluxos de saberes; surgiu também, no início da década de 1990, o conceito de não lugares [4], esses, intercambiáveis, padronizados pelo fator global e por isso sem força suficiente para dar forma a qualquer identidade (será?).


Talvez seja questão de pouco tempo para que comecemos a perceber a memória produzida no metaverso, as influências das identidades nessa construção e como memória e identidades se retroalimentam do mundo material para o virtual e vice-versa, considerando também os interesses das plataformas e, consequentemente, a sua programação algorítmica, com viés de padronização e direcionamento de comportamentos de consumo.


O metaverso, cujos espaços ainda são poucos, incipientes para não desenvolvedores e, em maioria, condicionados a convite, aceite de solicitação e/ou com alto custo para utilização, era compreendido, até pouco tempo, como um espaço virtual que tentava simular a realidade, passando, em seguida, para o entendimento de um espaço híbrido, imersivo, cujas camadas e formas de interação podem ser diversas, mas que, principalmente, integram camadas diferentes de ocupação, tanto no material quanto no virtual.

Fora dessa experiência que nos faz perceber que o futuro é agora, os aspectos da realidade material trazem questões complexas, como o armazenamento de dados, a segurança digital, o desflorestamento para dar lugar às fazendas de armazenamento, a mineração de dados, o alto custo energético, a degradação do meio ambiente natural e por aí vai.


Na situação (ainda) hipotética de virmos a produzir, no metaverso, memórias que consideraremos carecedoras de proteção, também a tutela poderá ser realizada em camadas, considerando fatores como a memória que transcende o mundo material aos espaços do metaverso, o formato da memória nos lugares de realidades híbridas, a linguagem de programação e as estruturas físicas que sustentam as plataformas.


Apesar de a escolha da(s) forma(s) adequada(s) de proteção dessas memórias ainda ser uma incógnita, a previsão constitucional é certa, seja pelos instrumentos acautelatórios já existentes, seja pela criação de um novo, como possibilita o parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição Federal de 1988.


Cibele Alexandre Uchoa, Escritora, Pesquisadora, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, Sócia-fundadora do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Nota


[1] O CONGRESSO futurista. Direção de Ari Folman. Köln: Pandora Film, 2014. (122 min.). Disponível em: https://bit.ly/3lMoIY6. Acesso em: 10 mar. 2023.


[2] NORA, Pierre. Mémoire collective. In: LE GOFF, Jacques (Ed.). La nouvelle histoire. Paris: Retz, 1978.


[3] NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Traduzido por Yara Aun Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, jul./dez. 1993.


[4] AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Traduzido por Maria Lúcia Pereira. 9. ed. Campinas: Papirus, 2012.

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